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Revelada a origem dos cães que conquistaram o Ártico

Estudo arqueológico e genético ilumina “a maior história de cooperação entre cães e humanos”

Cães puxam um trenó na ilha de Disko, na Groelândia, em março de 2019.
Cães puxam um trenó na ilha de Disko, na Groelândia, em março de 2019.Tatiana R. Feuerborn
Nuño Domínguez

No Alasca existe um sítio arqueológico chamado Nunalleq que é como uma cápsula do tempo. Aqui, a terra permaneceu congelada durante séculos e o que sai dela está surpreendentemente preservado. O arqueólogo Rick Knecht encontrou entalhes de âmbar, máscaras de madeira e, principalmente, cordas feitas com erva seca cortada há mais de 400 anos, ou, como ele diz, quando Shakespeare ainda andava pela Terra.

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Essas cordas falam sobre um dos capítulos mais difíceis e desconhecidos da expansão dos seres humanos pelo planeta. Há cerca de 2.000 anos, os esquimós –um grupo de caçadores nômades da Sibéria– se lançaram à conquista do Ártico chegando primeiro ao Alasca e depois se deslocando pela costa leste do Canadá até a Groenlândia, onde chegaram há cerca de 800 anos.

O mais surpreendente é que conseguiram sobreviver geração após geração até hoje, o único grupo humano que conseguiu isso. Nada disso seria possível sem os cães que puxavam seus trenós. As cordas encontradas em Nunalleq eram, na verdade, arreios de trenó e tinham até piolhos de cachorro preservados. Em Nunalleq havia inclusive ossos de um filhote de cachorro que morreu esmagado quando o teto da cabana caiu antes que o colocassem para puxar a carga.

Agora, uma equipe de arqueólogos e geneticistas analisou os crânios de 391 cães encontrados em assentamentos humanos de até 4.500 anos até hoje para tentar esclarecer a origem desses cães de trenó que, juntamente com duas embarcações, caiaque e umiaque, permitiram que os esquimós, ou inuítes, sobrevivessem em um dos lugares mais hostis do planeta.

“Estamos possivelmente diante da maior história de cooperação entre cães e seres humanos”, ressalta Tatiana Feuerborn, pesquisadora do Centro de Paleogenética da Universidade de Estocolmo e do Museu de História Natural da Suécia e coautora do estudo, publicado recentemente pela Royal Society. “Os primeiros povoadores da América chegaram cruzando o Ártico há mais de 15.000 anos, mas não se estabeleceram lá”, explica. “Depois vieram os povos paleoinuítes, cerca de 4.000 anos atrás. Essa gente ficou durante centenas de anos, mas não usava trenós ou barcos e acabou desaparecendo da região. A primeira evidência do uso de trenós veio com os inuítes. Até o momento não foi possível saber se chegaram ao Ártico e amestraram os cães que já estavam nessa região ou se trouxeram seus próprios cães”, explica a pesquisadora.

O estudo mostra que os esquimós desenvolveram sua própria raça de cães especializados e com eles chegaram ao Ártico. Mais do que melhores amigos eram “ferramentas vivas”, diz Feuerborn. Não apenas puxavam a carga, mas também caçavam, vigiavam e até serviam de alimento quando a caça escasseava ou mesmo por puro capricho gastronômico, segundo o estudo. A morfologia deles era diferente da dos cães trazidos pelos paleoinuítes. Eram cães maiores, com cabeças mais estreitas.

A equipe também analisou o genoma mitocondrial, que passa da mãe para os filhos, de quase 1.000 cães e lobos. Os resultados confirmam que a origem dos cães inuítes está na Sibéria. O trabalho também mostra que o DNA dessa raça de cães ainda está presente nos cães de trenó da Groenlândia, que são o que existe de mais parecido hoje com os antigos cães inuítes. Esses cães podem estar com seus dias contados. Seu número foi drasticamente reduzido pela fragmentação do território por causa da mudança climática, pela crescente preferência dos caçadores de esquimós pelas motos de neve e pelos estragos causados pela cinomose e pelo parvovírus, de acordo com um estudo recente. Restam apenas 15.000.

Quando os europeus chegaram ao Ártico no século XIX contaram que os esquimós cruzavam seus cães com lobos para lhes dar força. Os antropólogos que começaram a estudar essas culturas um século depois contaram as mesmas histórias. Em teoria, os esquimós preferiam que seus cães emprenhassem uma loba e não o contrário. Mas a análise de DNA não encontrou rastros de que os cães inuítes tivessem DNA de lobo. Isso não significa que não existisse, mas provavelmente não era uma prática comum, talvez de propósito. “As histórias de hibridação entre lobos e cães são muito frequentes na Groenlândia de hoje, mas essas mesmas fontes dizem que os híbridos geralmente são cães de trenó ruins e que os criadores tentam evitar o aspecto de lobo”, escrevem os autores. Além disso, o número de cruzamentos entre lobos e cães foi limitado ao longo de milhares de anos, a julgar pelo fluxo genético entre as duas espécies, o que “torna pouco provável que qualquer semelhança entre os cães inuítes e os lobos do Ártico seja resultado de cruzamentos”, acrescentam. A última palavra será da análise do DNA nuclear de cães e lobos, uma tarefa na qual a equipe Feuerborn já está trabalhando.

“Este é um estudo de enorme interesse e muito bem feito”, diz Pat Shipman, paleoantropóloga aposentada da Universidade Estadual da Pensilvânia. “Atualmente, os criadores de cães que são usados em corridas de trenó no Alasca mantêm duas linhagens, uma muito veloz e outra muito resistente. É possível que os inuítes tenham feito exatamente o mesmo”, afirma.

Shipman acredita que “talvez seja um exagero” considerar este capítulo como a cooperação mais importante entre cães e seres humanos. “Eu mantenho a teoria de que a invasão bem-sucedida da Europa pelos humanos modernos e sua permanência durante a idade do gelo em detrimento dos neandertais, que se extinguiram, foi facilitada pela domesticação do cão, que ocorreu há cerca de 40.000 anos”, cogita Shipman.

A domesticação do cão é um dos eventos mais fascinantes e desconhecidos da história da humanidade”, reconhece Elisabetta Cilli, especialista em DNA antigo da Universidade de Bolonha (Itália). Nos últimos anos foram publicados estudos contraditórios; alguns deles sustentam que houve uma única domesticação há cerca de 40.000 anos, outros apontam pelo menos duas em lugares diferentes da Eurásia, há pelo menos 12.000 anos. “Atualmente, temos muito poucas certezas. Acredito que aconteceu em vários lugares ao mesmo tempo, mas é um problema muito complexo que iremos esclarecendo em parte graças a análises paleogenéticas como esta”, ressalta Cilli.

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