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Coluna
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'Pátria' mostra sem maquiagem a Espanha dos tempos do grupo ETA

Não há nada que eu considere desinteressante nesta série, a que mais me agradou entre todas as que foram feitas na Espanha

Cena de 'Pátria'. Em vídeo, trailer da série da HBO (em espanhol), que estreia em 27 de setembro.
Carlos Boyero

Nunca tive muita paciência, nem obrigação cultural, nem esforço, nem espírito de sacrifício para encontrar o paraíso no fim do túnel nos livros que me entediavam, eram incompreensíveis e herméticos para mim, não me arranhavam nenhuma fibra emocional. E alguns deles tinham recebido todo o tipo de bênção acadêmica e certificado de grande arte. A mesma coisa me acontecia com o cinema. Ou com certos seres humanos. Eram uma perda de tempo, quando você ainda acreditava que este servia para te conceder coisas prazerosas. Mas era maravilhoso quando não conseguia nem queria parar de ler um romance, curtir cada uma de suas páginas, me sentir transportado a um universo magnético, temer a chegada do final. São livros aos quais volto sempre, sem jamais me decepcionar, que continuam a me provocar as sensações inesquecíveis da primeira vez que os visitei.

Isso me aconteceu há alguns anos com a descoberta logo cedo do romance Pátria, de Fernando Aramburu. Fiz isso antes que aparecessem críticas, resenhas e análises que lhe deram seu aval. Eu o devorei de uma arrancada só (interrompida apenas pela necessidade de dormir), fascinado pelos personagens, as situações e a atmosfera, intrigado pelo seu desdobramento com tremor diante da sanguinária sordidez do que narrava, admirando sua complexa descrição de tudo e de todos, contagiado por sua tristeza e desolação, na expectativa de seu desenlace imprevisível. Ao que parece, essas sensações foram compartilhadas por inúmeros leitores. É o que acontece algumas vezes com algo que recebe a definição de classicismo.

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E, claro, tive dúvidas quando descobri que iam fazer uma série de televisão que adaptaria um livro tão poderoso. A seu favor estava o fato de que iria ser produzida pela marca HBO, criadora das melhores séries feitas no século XXI, capaz de alcançar uma arte autêntica num formato que quase sempre optou pelo convencional, a mediocridade, o previsível. Inevitavelmente, este selo poderia implicar garantia de certa qualidade, a aposta dos mais dotados em um romance imprescindível que havia sido um frutífero terremoto nas livrarias da Espanha.

O responsável por uma tarefa tão arriscada, o roteirista e criador da série, é Aitor Gabilondo, que tinha encontrado a fórmula do sucesso comercial em várias produções exibidas pela Telecinco. Séries como El Príncipe e Vivir sin Permiso, produtos habilidosos, feitos à medida dos apetites do consumidor e que pessoalmente me causavam mais frio que calor, tão vitoriosas quanto esquecíveis.

E depois de tanta vontade de verificar como as imagens cinematográficas se comportaram com as palavras escritas de Aramburu, me chamam a uma sala para ver Pátria. É composta por oito capítulos. Eu a vejo em duas sessões. Poderia ter feito isso em apenas uma. Sem que surgisse nem sequer um momento de fadiga. Conseguiram um resultado magnífico, uma adaptação tão crível quanto apaixonante dessa história densa, assustadora, cheia de sombras e de algumas luzes, de seres humanos em circunstâncias permanentemente violentas e trágicas, de pessoas destroçadas e para sempre à deriva pelas garras de um monstro chamado ETA, que durou cinco décadas. Tudo é plausível nela. O ambiente, a linguagem, o que se mostra e o que se sugere, a ação e a reflexão, a ausência de maniqueísmo, a descrição de um pesadelo que parecia infindável, os afetos traídos, o silêncio cúmplice ou temeroso do entorno em relação às vítimas, o fanatismo e suas brutais consequências, a execução física e moral que os assassinos exercem e as torturas que o Estado lhes aplica ao prendê-los, a ameaça, o ódio e o consequente pavor como protagonistas de uma sociedade alarmantemente doente.

Félix Viscarret dirige os quatro primeiros episódios e Óscar Pedraza os demais. Com muito mérito. E por trás de tudo isso está o trabalho inteligente, cuidadoso e homérico do inventor, Aitor Gabilondo.

Não vejo o nome de Fernando Aramburu nos roteiros, mas quero imaginar que ele reconheceria como seu o mundo que as imagens retratam. A escolha de todos os elementos que compõem Pátria foi tão bem pensada quanto audaz. E acertam. A credibilidade dos excelentes e para mim desconhecidos intérpretes, quase todos bascos, é absoluta. Da mesma forma, o enredo, os diálogos, os ambientes internos e externos, o ritmo, a excepcional fotografia, o clima, a linguagem externa e interna.

Não há nada que eu considere desinteressante em Pátria. Me provoca muitos e gratos sentimentos. É a série de que mais gostei (e não me esqueço da primeira e brilhante temporada de La Peste) de todas as que foram realizadas na Espanha. A HBO esteve à altura de seu prestígio. Não sei como Pátria será recebida pelos espectadores. Mas sua qualidade é transparente, está claro. Aitor Gabilondo e a sua equipe podem dormir tranquilos.

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