O cérebro de Boltzmann
Em um universo caótico, a existência de uma mente que percebe uma ordem ilusória parece mais provável que a ordem real
Se um gigante de 35 quilômetros de estatura, como o Micrômegas de Voltaire, visitasse a Terra, morreria esmagado por seu próprio peso. A estatura do supergigante e todas as suas demais medidas lineares seriam 20.000 vezes maiores que as de um ser humano, por isso seu volume e seu peso seriam 8 trilhões de vezes maiores (20.000³). No entanto, a parte dos ossos, tendões e músculos de Micrômegas seria “apenas” 400.000 vezes maior que a nossa (20.000²), por isso, comparativamente, seria 20.000 vezes menos forte e resistente que um humano e não poderia suportar seu próprio peso. Um ser tão descomunal só poderia viver em um planeta muito pequeno e pouco denso, de gravidade insignificante.
Mas até em uma gravidade muito baixa uma criatura do tamanho de Micrômegas seria pouco viável, e teria de ter uma fisiologia muito distinta da nossa. Questões como a dissipação do calor, a transmissão dos impulsos nervosos, a circulação sanguínea e a própria motricidade seriam problemas difíceis de resolver satisfatoriamente. Uma possibilidade seria que o tempo subjetivo do gigante fosse diferente do nosso, e um de seus instantes (por exemplo, uma piscada) durasse vários minutos.
Quanto a uma ilustração clássica de um gigante na Terra empurrando um barco com a mão, que acompanha meu artigo anterior na edição espanhola do EL PAÍS (leia aqui, em espanhol), ela não faz justiça a Micrômegas. A mão de um supergigante de 35 quilômetros de estatura deveria medir 4 quilômetros, ou seja, umas cem vezes mais que o veleiro que aparece junto a ela.
Questões como a dissipação do calor, a transmissão dos impulsos nervosos, a circulação sanguínea e a própria motricidade seriam problemas difíceis de resolver satisfatoriamente
O paradoxo do cérebro de Boltzmann
Falar de um gigante tão extremamente improvável como Micrômegas nos convida a pensar em outro ser muito maior e improvável: nosso próprio universo. A desordem parece o mais característico da grande explosão da qual procedemos, e no entanto há ilhas de ordem tão surpreendentes como a vida e a consciência.
Por que será que há tanta ordem no universo, se conforme a segunda lei da termodinâmica, a entropia − ou seja, a desordem − deve aumentar continuamente? O estado mais provável do universo é o de uma entropia muito alta: uma imensa sopa de partículas homogeneamente caótica. Por que, portanto, observamos um nível de entropia relativamente tão baixo?
Como resposta a essa pergunta, o físico estatístico Ludwig Boltzmann sugeriu, no final do século XIX, a possibilidade de que o universo “excessivamente ordenado” que observamos seja uma flutuação aleatória surgida em um metauniverso de maior entropia, muito maior que o nosso e inobservável. Por outro lado, em um universo caótico (como poderia/deveria ser o nosso) essas flutuações aleatórias poderiam dar lugar a entidades conscientes surgidas de repente por puro acaso, e dotadas até mesmo de lembranças e de uma sensação subjetiva de ordem que não tivesse nada a ver com o caos reinante. E a possibilidade de que surgissem esses “cérebros de Boltzmann” solipsistas, embora fosse extremamente improvável, seria menos improvável que a de um universo realmente tão ordenado a ponto de que a vida e a consciência fossem, nele, fenômenos normais.
Onde está a paradoxo? E mais: como você que está lendo estas linhas sabe que não é um cérebro de Boltzmann?
Carlo Frabetti é escritor e matemático, membro da Academia de Ciências de Nova York. Publicou mais de 50 obras de divulgação científica para adultos, crianças e jovens, entre elas Alice no País dos Números e El Gran Juego. Foi roteirista do programa espanhol de televisão La Bola de Cristal.
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