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O que o seu celular revela sobre você

Estudo demonstra que os metadados das ligações e SMS permitem saber onde você vive, suas relações pessoais e sua religião

Miguel Ángel Criado

Quando explodiu o escândalo da espionagem em massa da NSA, uma das justificativas dos responsáveis da agência do Governo dos EUA foi que, no caso das ligações telefônicas, só gravavam os números de telefone e a duração da chamada (metadados), mas que não escutavam as conversas e não liam as mensagens. Agora, um estudo revela que, com esses metadados, é possível saber a identidade de quem fala, seu estado de saúde, sua rede de relações pessoais, a ideologia e sua religião.

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A afiliação política, as crenças e a saúde são dados pessoais de proteção especial, de acordo com a legislação espanhola sobre privacidade. Mas também o são em países com leis de proteção de dados mais brandas, como os EUA. Além disso, tanto nos EUA como na Espanha, a interceptação e gravação das comunicações pessoais é um crime grave se não possuir autorização e supervisão judicial.

A NSA, em sua guerra contra o terrorismo, burlou essas limitações criando um sistema de captação de metadados. Até o escândalo estourar, os espiões podiam compilar todas as ligações feitas por um possível suspeito durante cinco anos e até em três graus de separação: registraram as chamadas de A a todos os B, as feitas por B a todos os C e destes a todos os D. Como não escutavam as conversas, não precisavam da autorização do juiz. O problema é que, com alguns algoritmos bem escritos, os metadados são alcaguetes perfeitos.

Um grupo de pesquisadores da Universidade de Stanford (EUA) acaba de demonstrar o quanto é possível saber conhecendo somente um número de telefone, os números a quem se liga e se envia mensagens e a duração das chamadas e a distância dos SMS. Desde a cidade na qual a pessoa vive até se sofre do coração, passando por quem é sua companheira ou companheiro e suas simpatias políticas.

O trabalho dos pesquisadores foi captar 800 voluntários para que instalassem em seus celulares o aplicativo MetaPhone (já não está disponível). O aplicativo registrou todas as ligações e SMS enviados, os destinatários e sua duração. Com essas ligações e mensagens enviadas e recebidas conseguiram criar um gráfico com todas as conexões (ligações e SMS) entre os pontos (telefones). Antes de estudá-la para retirar toda a informação, pediram aos participantes seus perfis do Facebook. Com eles escreveram os algoritmos de previsão e, o mais importante, comprovaram que acertaram.

Em cinco anos, qualquer pessoa está conectada em três graus com outros 20 milhões de pessoas

A primeira coisa que viram foi a enorme magnitude da rede de metadados. Se o seu gráfico for aplicado ao esquema de espionagem da NSA (lembrando, ligações com até três graus de separação e durante cinco anos), o Governo dos EUA obteve informação de praticamente todos os norte-americanos. No caso do estudo, baseado somente em 823 participantes com 337 ligações em média durante dois meses, os pesquisadores conseguiram chegar a outros 62.000 números de telefone que trocaram 1,2 milhões de SMS e 250.000 ligações (o sistema Android tem um defeito que o faz guardar somente as últimas 500 ligações).

“Se ligo para você, estamos conectados em um grau. Se depois você liga a uma terceira pessoa, eu estou conectado com essa pessoa em dois graus”, explica o pesquisador do Laboratório de Segurança Informática da Universidade de Stanford (EUA) e coautor do estudo, Patrick Mutchler. “O número de pessoas dentro dos três graus de uma só pessoa [o limite da NSA] se eleva ao cubo em função do número de pessoas para quem uma pessoa liga diretamente, de modo que não é preciso muitas ligações de um único indivíduo para se chegar a uma grande quantidade de pessoas em três graus”, afirma Mutchler. Em média, e fazendo o que fazia a NSA até Obama impor limites, uma pessoa pode se conectar com outros vinte milhões nos cinco anos em que a agência de espionagem guardou os metadados.

A segunda coisa revelada pela pesquisa é a particular topologia da rede de conexões, que segue a estrutura das chamadas redes de mundo pequeno. A característica principal desse tipo de rede é que pouquíssimos pontos estão conectados entre si, mas, ao mesmo tempo, quase todos estão conectados por meio de poucos pontos intermediários. Essas redes respondem à teoria dos seis graus de separação postulada nos anos 30 do século passado e demonstrada empiricamente por Stanley Milgram nos anos 60. Simplificando, afirma que qualquer pessoa do planeta está conectada à outra por meio de cinco intermediários.

Mas o estudo, publicado na terça-feira na revista PNAS, vai além. Buscando somente no Google e Yelp, os pesquisadores puderam identificar um terço das pessoas por trás dos números. Estão convencidos de que usando serviços mais especializado, por exemplo, a informação da qual dispõe a NSA, a porcentagem pode ser muito maior.

Com os 800 números do estudo, a NSA teria os dados de toda a população norte-americana

Os humanos são seres de costumes, de modo que tendemos a comprar nos mesmo lugares, muitos deles próximos de onde vivemos. E são esses negócios que destacam seus telefones para que sejam facilmente localizáveis pela Internet. Partindo das ligações realizadas a esses negócios, os pesquisadores viram como muitas das ligações são feitas de uma latitude e longitude determinada: as coordenadas de nossa casa.

A localização geográfica vem junto com a dos interesses e necessidades. Se uma pessoa liga em um determinado momento a uma loja de armas e ao serviço ao cliente de um determinado fabricante, é fácil inferir que essa pessoa possui alguma arma. O mesmo raciocínio foi aplicado aos serviços religiosos, empresas de seguro e serviços médicos. Talvez o mais simples para os pesquisadores foi saber se os participantes no estudo tinham um companheiro ou companheira e qual era sua identidade.

“Os resultados do estudo mostram uma das perspectivas mais avançadas da ciência de dados: a união de dados heterogêneos oferece mais informação do que os dados separados”, diz o pesquisador da Escola Técnica Federal de Zurique (ETH), o espanhol David García. Ele destaca em particular o caso das ligações a médicos: “Ao se combinar dados é possível fazer inferências até mesmo sobre as doenças do indivíduo, sem dúvida um dos aspectos mais importantes da privacidade”.

García, que não participou desse trabalho, já mostrou como é possível saber a orientação sexual de uma pessoa por suas conexões em uma rede social, mesmo que não se tenha conta na rede. “É possível inferir muita coisa através do que nossos contatos revelam, sem a necessidade de se ter acesso aos nossos dados individuais. Ou seja, essa pesquisa mostra que seu direito à privacidade é regulado pelas ações de seus contatos (e os contatos de seus contatos), e não é algo sobre o que temos pleno controle como indivíduos”.

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