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Leicester: a imprável saga até a glória no Campeonato Inglês

Os passos da epopeia do time que, quase rebaixado em 2015, derrotou os milionários do futebol e virou campeão

Um torcedor do Leicester comemora uma vitória do seu time.
Um torcedor do Leicester comemora uma vitória do seu time.Leon Neal (AFP)
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No verão, as casas de apostas pagavam 5000 para 1 se o Leicester fosse campeão da Premier League. O prêmio foi baixando, mas sempre pareceu uma surpresa monumental. Parece ficção, mas hoje é real: a Cinderela da Premier League ganhou o título depois que o Tottenham não conseguiu vencer no feudo de Chelsea (2x2) no jogo final da antepenúltima rodada do campeonato. A equipe de Stamford Bridge levou dois gols, mas conseguiu empatar com um gol de Hazard a dez minutos do final, praticamente a única coisa que o melhor jogador do campeonato do ano passado fez nesta temporada.

Os jogadores do Leicester receberam a notícia reunidos diante da televisão na casa do artilheiro Jamie Vardy, enquanto o técnico Claudio Ranieri estava a bordo de um avião depois de ter ido visitar sua mãe em Roma. O Tottenham procurou a vitória em um campo onde não ganha há mais de 26 anos. Parecia que poderia conseguir vencer, porque se adiantou no marcador pouco antes do intervalo, com gols de Kane e Lamela, mas o Chelsea respondeu. Cahill descontou mais de meia hora antes do final e a dez minutos do encerramento Hazard marcou e deu o título ao Leicester, para júbilo da torcida local. “Façam isso por Ranieri”, dizia um cartaz no coliseu do último campeão da Premier, agora na metade da tabela depois de uma temporada decepcionante. “Odiamos o Tottenham”, cantaram seus torcedores em vários momentos da partida. E assim o último campeão passou o bastão para o novo, o mais inesperado, um Leicester cuja eclosão pode ser explicada numa série de chaves:

A dinâmica. A nove jogos do fim do campeonato do ano passado, o Leicester era o lanterna, sete pontos atrás da salvação. Terminou seis pontos acima dela depois de vencer sete jogos, empatar um e cair contra um Chelsea embalado rumo ao título. Era a temporada do retorno à Premier League depois de dez anos longe dela, inclusive com uma rápida passagem, em 2008, pela terceira divisão do futebol inglês e uma derrota traumática três anos atrás em um playoff contra o Watford, quando poderia ter subido, com um pênalti a favor perdido no último minuto da prorrogação e um imediato contra-ataque do rival que o eliminou. Schmeichel, Morgan, Drinkwater e Schlupp jogaram aquela partida. Jamie Vardy, que não jogou nenhum minuto, e Harry Kane, o atual artilheiro da Premier com o Tottenham, estavam no banco de reservas naquela fatídica tarde. Hoje compõem a linha de ataque da seleção inglesa.

O verão. No fim de junho, o Leicester demitiu Nigel Pearson, o técnico com o qual voltara à Premier e que havia salvado o clube do rebaixamento. O clube alegou “diferenças fundamentais de perspectiva”. Alguns dias antes havia vazado um vídeo com três jovens jogadores do clube em uma orgia com mulheres durante uma excursão de pós-temporada na Tailândia, a terra do proprietário do clube. No vídeo, proferiam vários comentários racistas e o clube rescindiu seus contratos. Um dos jogadores era o filho de Pearson, que também fora recriminado por episódios de briga com adversários, jornalistas e até mesmo torcedores.

O treinador. Gary Lineker, glória do clube, do futebol inglês e agora respeitado apresentador do Match of the Day, o emblemático programa que resume cada rodada da liga na BBC, foi taxativo depois da demissão de Pearson. “O futebol não deixa de surpreender com sua estupidez”. Quando o nome do substituto foi anunciado, ele não se perturbou em sua conta no Twitter: “Claudio Ranieri? De verdade?”. Qualificou-o de opção “aborrecida”. O italiano chegou depois de um retumbante fracasso com a Grécia, sua primeira experiência como treinador de seleções. Assinou por dois anos e foi despachado depois de quatro meses, um empate e três derrotas, a última em Atenas contra as Ilhas Faroe. O Leicester chegou como seu sétimo destino em oito anos, quando a equipe já preparava a temporada em um retiro austríaco. “Não há muito para mudar, apenas alguns conceitos táticos”, disse.

O dinheiro. O elenco atual do Leicester custou menos de 30 milhões de euros (cerca de 120 milhões de reais) em contratações, metade do que o Manchester City pagou neste verão para ter Sterling, um reserva. Por Mahrez, o melhor jogador da temporada, pagou meio milhão de euros; por Vardy, um milhão e meio. No atual nível de preços na Premier, no verão chegaram Kanté, comprado por oito milhões do Caen da França, e Okazaki, contratado junto ao Mainz por onze milhões, a mais cara contratação da história do clube. O baixo custo do Leicester é relativo nos parâmetros da liga espanhola. Vardy ganha cinco milhões de euros por ano e a folha de pagamento anual do elenco, embora seja uma das mais baixas da Premier, supera os 60 milhões de euros. Na liga espanhola essa folha de pagamento seria a sexta, equivalente à do Villarreal. Mais da metade dos clubes do campeonato espanhol têm folhas de pagamento entre 14 e 30 milhões de euros.

O estilo. “Sangue, coração e alma”, explica Ranieri sobre sua equipe, que despreza a importância da posse de bola e equilibra os jogos na base na pressão e do contragolpe. Domina o jogo aéreo e se movimenta com uma máxima. “Deliciamos-nos quando não somos vazados”, diz o treinador. Com pressão máxima se aferrou a essa crença porque em seis dos últimos oito jogos não sofreu gol. Nas nove primeiras rodadas, a defesa havia sido vazada em todas as partidas. Antes da décima prometeu convidar os jogadores para comer uma pizza se fechassem o gol. Eles conseguiram, mas tiveram de preparar a massa para provar a pizza. “Eles devem trabalhar para conseguir as coisas”, disse Ranieri.

O esforço. Quando o Leicester já era uma ameaça para os grandes, Manuel Pellegrini, treinador do Manchester City, procurou uma explicação. “Eles jogam uma partida por semana e sempre com os mesmos jogadores. Isso se nota, mas o mérito é muito grande”. Doze jogadores terminarão o campeonato depois de terem participado de pelo menos trinta jogos. Nos períodos sem jogos por conta das partidas das seleções, Ranieri chegou a dar sete dias de férias para a maioria de seus homens, que até março quase não participavam de jogos entre seleções.

Os rivais. O sucesso do Leicester é o fracasso dos grandes do futebol inglês, de Arsenal, Manchester City, Manchester United, Chelsea e Liverpool, de técnicos como Mourinho e Rodgers, que perderam seus empregos, de Pellegrini, que não continuará no cargo, ou de Wenger e Van Gaal, muito questionados por suas respectivas torcidas. Mas é preciso dar crédito ao Leicester, derrotado apenas três vezes até agora nesta temporada, o mesmo que o Chelsea na temporada passada, menos até agora do que qualquer outro campeão nos últimos onze anos.

A campanha. A classificação mais baixa da equipe foi o oitavo lugar após a sétima rodada, mas apenas quatro pontos atrás do líder. No final de novembro chegou à primeira posição. “Nosso objetivo é chegar aos 40 pontos”, esclareceu Ranieri. Atingiu esse número de pontos exatamente na metade do campeonato e desde a 23ª rodada ninguém o tirou da liderança. Desde então só perdeu um jogo, nos acréscimos, na casa do Arsenal e com dez homens em campo.

As pessoas. A epopeia do Leicester tem alcance universal. É o time dos neutros. “Nós merecemos um final feliz como o dos filmes”, disse Ranieri na semana passada. Já surgiu interesse de uma produtora em levar às telas a história do atacante Jamie Vardy, que com 23 anos jogava na sexta divisão do futebol inglês, usou uma tornozeleira eletrônica durante algum tempo depois de se envolver numa briga e chegou a dividir o tempo entre o futebol e um emprego numa fábrica de material ortopédico. Ranieri não ficou chateado quando lhe disseram que Robert de Niro poderia fazer seu papel no filme. “Eu morro para que eles ganhem o campeonato”, confessou há algumas semanas o príncipe William, torcedor do rebaixado Aston Villa. Todo mundo quer ver o Leicester: a equipe já fechou sua participação em amistosos de pré-temporada contra Celtic, Barcelona e PSG, este último na Califórnia.

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