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Tribuna
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A ONU toma medidas para restabelecer a paz

O mundo está entrando em um novo período de instabilidade. Incertezas políticas e econômicas, somadas à mudança climática e à nova revolução tecnológica, contribuem para o estado de turbulência

Agora é oficial. O mundo está entrando em um novo período de instabilidade. Incertezas políticas e econômicas, somadas à mudança climática e à nova revolução tecnológica, contribuem para o estado de turbulência. Diplomatas e especialistas da área de defesa, presentes nas reuniões de Davos e Munique nos últimos meses, mostraram preocupação com essas questões.

Todos concordam que a política das grandes potências está de volta. Desde a Guerra Fria não se via um potencial tão grande para a deflagração catastrófica de violência entre os EUA, a Rússia e a China. A guerra por procuração (proxy war) na Síria, a agressividade russa na Ucrânia e em países vizinhos e a tensão no Mar da China Meridional são, de certo modo, um ajuste depois de duas décadas de relativa estabilidade.

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Os cerca de 40 conflitos armados atualmente espalhados pelo mundo estão cada vez mais violentos e fragmentados - e geram níveis recordes de deslocamento de população. Mais pessoas morreram como resultado de atos terroristas nos últimos anos – principalmente na África e no Oriente Médio – que em qualquer outro momento da história.

O peso desses desafios mundiais no Sistema das Nações Unidas aproxima a organizaç­­­­ão de um ponto crítico. Existem atualmente 16 operações de paz em andamento: 9 na África, 3 no Oriente Médio, 2 na Europa e 1 nas Américas. Nunca houve tantos capacetes azuis em campo. O custo anual gira em torno de 8 bilhões de dólares.

Essas e outras tensões afetam o que os líderes mundiais, políticos e militares pensam sobre paz e segurança internacional. Alguns pedem o retorno do isolacionismo, praticamente se limitando a prestar ajuda humanitária aos principais focos de violência; outros reivindicam formas mais incisivas de intervenção, principalmente para acabar com o extremismo. O espaço para a moderação e o equilíbrio está cada vez menor.

Diante de tal situação desanimadora, o que a ONU deve fazer?

A ONU começou com o que faz de melhor: encomendou relatórios. O secretário-geral Ban Ki Moon pediu não apenas um estudo, mas vários. Em 2014, solicitou que a ONU criasse painéis de alto nível para deliberar sobre o futuro das operações de paz, a arquitetura para a consolidação da paz e a relação entre mulheres, paz e segurança.

Todo esse trabalho de autoanálise tem aplicação no mundo real. A ONU precisa redefinir o seu propósito para lidar melhor com um sistema global volátil. Após algum tempo de reflexão, já pode mostrar resultados. E quais as principais mensagens decorrentes desses estudos? Não surpreende que os três painéis tenham concluído que uma ONU respeitável, idônea e bem equipada seja parte da solução.

Mais além, pelo menos recomendações sobressaem.

Primeiro, a prevenção de conflitos está na ordem do dia. A melhor forma de garantir a estabilidade é impedir que a guerra tenha início. Isso significa que a ONU precisa adotar uma cultura de prevenção em toda a organização. Mas ela não pode fazer isso sozinha. Seus Estados-membros e as organizações regionais precisam apoiar o processo.

Segundo, a forma e a função das operações de manutenção da paz devem ser elaboradas de acordo com a situação no terreno e não pelos interesses políticos (muitas vezes conflitantes) da sede da ONU em Nova York. A organização precisa parar de usar o mesmo modelo para todas as missões de paz. O Conselho de Segurança, por sua vez, deve ser mais flexível em determinar o momento em que os capacetes azuis devem entrar, quanto tempo permanecer e quando sair.

Terceiro, parcerias inclusivas e estratégicas são cada vez mais indispensáveis. A ONU precisa parar de olhar para o próprio umbigo para cooperar mais com organizações regionais, organizações não governamentais e grupos da sociedade civil que tenham interesse na paz. Além disso, as atividades promovidas pela ONU devem focar nas pessoas e no que ocorre no terreno, e não em Nova York.

Quarto, é preciso sustentar e não apenas consolidar a paz. Essa mudança na retórica é importante. Em vez de limitar o investimento relativo à paz a cenários pós-conflito, a ONU e seus parceiros devem investir mais na paz antes que as guerras eclodam. Essa recomendação reforça os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável recentemente elaborados, especialmente o objetivo 16, que promove sociedades justas, pacíficas e inclusivas.

Quinto, a posse da paz pelo Estado, embora difícil, é crucial. Mas ela não pode se limitar às instituições do governo nacional, mas incluir também partidos políticos, sindicatos, câmaras de comércio e grupos minoritários. Quando atores-chave são excluídos dos processos de paz, é muito mais provável que as guerras recomecem.

Por fim, e talvez o mais importante, deve haver um comprometimento muito mais proativo com a participação das mulheres em todos os estágios dos processos de paz. Isso inclui o envolvimento em múltiplos níveis, além de serviços de apoio e proteção a mulheres e meninas. O investimento em mulheres que trabalham pela paz e o respeito aos direitos das mulheres também representam uma forma efetiva de enfraquecer o extremismo.

São recomendações sensatas. Os Estados-membros da ONU deveriam começar a implementá-las imediatamente. Vale lembrar que algumas delas não são novas. O Relatório Brahimi sobre operações de paz usou alguns desses mesmos argumentos em 2000, incluindo a necessidade de soluções políticas em detrimento das militares, a importância de maior coerência da ONU e parcerias mais fortes.

Então, qual a importância das novas propostas?

Para começar, elas refletem um mundo qualitativamente diferente. À medida que o cenário global se transforma, a ONU também deve se transformar. Os três estudos encomendados pelo secretário-geral reconhecem as ameaças novas e interconectadas que o sistema internacional enfrenta, entre elas o crime organizado transnacional, o crime cibernético e a violência causada por extremistas. Observam ainda que, mais que nunca, a ONU é alvo de ataques.

Um aspecto mais positivo é que há hoje novas organizações regionais com as quais a ONU pode se associar. São grupos distribuídos (desigualmente) pelas Américas, África e Ásia, alguns deles começando a desempenhar um papel mais assertivo na negociação de acordos de paz e no apoio à recuperação dos locais afetados. Embora ainda muito centrado no Estado, eles têm sido encorajados a se envolver de forma mais ativa na diplomacia preventiva, na prevenção de conflitos e nos processos de manutenção e consolidação da paz.

A ONU tem agora uma nova arquitetura para a paz, e está mais preparada para transformar essas propostas em ações. A estrutura começou a ser montada após a publicação do Relatório Brahimi, mas principalmente a partir de 2005. É formada por um Departamento de Manutenção da Paz maior e com mandato mais amplo, baseado na Doutrina Capstone (2008), e inclui ainda o Escritório de Apoio à Consolidação da Paz, a Comissão de Consolidação da Paz e o Fundo de Consolidação da Paz.

A organização começa finalmente a se posicionar adequadamente para encarar ameaças globais complexas. A grande pergunta é se essas propostas serão suficientes para tornar o mundo mais seguro e protegido.

Robert Muggah é o diretor de pesquisa do Instituto Igarapé.

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