A guerra da ciência contra o mosquito do zika
A manipulação genética e o uso de bactérias poderiam extinguir os mosquitos que transmitem o vírus
A ciência poderia acabar com o mosquito que transmite o zika vírus ou, pelo menos, reduzir sua população de forma significativa. Com o uso das mais modernas ferramentas de manipulação genética, os cientistas propõem esterilizar os machos, masculinizar as fêmeas ou tornar as crias dependentes de um antibiótico. Outros encontraram em uma bactéria um mecanismo menos radical para que os mosquitos sejam resistentes aos vírus.
A Organização Mundial da Saúde dizia esta semana que há pelo menos 15 grupos trabalhando em uma vacina contra o vírus do zika. Mas acrescentava em seguida que ainda será preciso de mais uns 18 meses para que possa ser testada em grande escala. Nesse prazo, a ciência poderia levar à extinção o mosquito que transmite o vírus, desde que sejam reduzidos os controles de segurança dos experimentos que estão sendo realizados com mosquitos transgênicos. Algo diferente é que seja aceitável acabar com toda uma espécie, ainda que seja a de um mosquito que transmita vários vírus. A ideia básica aqui é matar o mensageiro. O vetor do zika é o Aedes aegypti, mosquito originário da África que colonizou toda a zona tropical do planeta e que também pode transmitir a febre amarela, a dengue e a chikungunya. Entre as armas convencionais para freá-lo estão os inseticidas e o uso de repelentes, ou até, como fizeram as autoridades de vários países americanos – com mais efeitos chamativos do que eficácia –, deslocar milhares de soldados para caçá-los casa a casa.
No entanto, essa guerra não será ganha com armas convencionais, mas com a genética e uma espécie de guerra bacteriológica. É o caso da empresa britânica Oxitec. Mediante manipulação genética, conseguiu o mosquito OX513A, um exemplar macho que porta e transmite uma mutação genética que faz com que suas crias sejam dependentes da tetraciclina, um antibiótico. Se lhes faltar, morrem antes de superar a fase de pupa ou larva.
“Realizamos testes em campo aberto na Malásia, Brasil, Panamá e Ilhas Cayman”, diz Andrew R. McKemey, cientista da Oxitec. “Em todos os experimentos constatamos que a liberação de nossos mosquitos OX513A reduziu a população silvestre em mais de 90%, um nível de controle sem comparação com outros métodos”, acrescenta. No ano passado, a Oxitec iniciou um projeto-piloto em Piracicaba (SP). Embora na época seu objetivo fosse comprovar se a proliferação desses mosquitos transgênicos reduziria a incidência da dengue, agora o trabalho se ampliou a mais zonas, desta vez para combater o zika.
Há 15 grupos buscando uma vacina contra o zika, mas a OMS estima que levarão uns 18 meses para obtê-la
"A estratégia da Oxitec requer a separação à mão dos machos e das fêmeas na fase de pupa. Isso significa muito trabalho, tanto para separá-los e criá-los como para descartar as muitas fêmeas”, diz o professor da universidade Virginia Tech (EUA), Zach Adelman. Esse entomologista propõe outra ideia mais radical: masculinizar as fêmeas do A. aegypti, as únicas que picam e transmitem o vírus. “Usando nosso enfoque, todos os mosquitos criados em laboratório seriam machos. Não seria necessária a separação por sexos nem desperdiçar recursos com as fêmeas”, acrescenta.
Liderando uma dezena de cientistas, Adelman descobriu em meados do ano passado o que chamaram de fator M ou masculinidade, que determina o sexo no A. aergypti. “O fator M é um gene que serve como interruptor mestre. Quando está on, o mosquito se desenvolve como macho, quando está off, ele o faz como fêmea. Como só as fêmeas põem ovos, quanto mais presente estiver esse interruptor na natureza, haverá menos fêmeas das que picam”, explica Adelman.
Com uma manipulação genética tradicional, a transmissão desse fator de masculinidade seguiria as leis de Mendel, ou seja, a princípio se transmitira a 50% das crias, mas sem a liberação de novas remessas de mosquitos transgênicos, acabaria por retroceder. Aqui é onde intervém uma das técnicas mais recentes e tão poderosa que quase dá medo.
Trata-se dos sistemas que na Espanha foram batizados como reação em cadeia genética ou estímulo genético (gene drive, em inglês). Usando a técnica de edição genética CRISPR, Adelman acredita que se poderia transformar o gene do fator M em dominante. “O sistema CRISPR/Cas9 permite atuar sobre uma zona específica de um cromossomo, quebrando-a. Se somos muito precisos onde rompemos, poderíamos duplicar o gene do fator. Dessa maneira, quase toda a progênie seria de machos, em vez de somente a metade. Esse viés poderia continuar em cada geração até que quase não restassem fêmeas”, sustenta o entomólogo norte-americano.
Cientistas querem esterilizar os machos do mosquito 'A. aegypti', masculinizar as fêmeas ou tornar as crias dependentes de um antibiótico
Esse poder dos sistemas de estímulo genético levou a uma vintena dos mais destacados especialistas nessas novas ferramentas de engenharia genética a publicarem uma lista de recomendações de segurança para evitar que os experimentos não saiam ainda do laboratório. As Academias Nacionais dos EUA estão preparando um relatório sobre as possibilidades e os riscos dessas técnicas de manipulação, com previsão para este semestre.
A bactéria antivírus
Muito antes de os humanos idealizarem esses sofisticados sistemas de manipulação genética, uma bactéria já se engendrara para determinar o sexo dos insetos, dentro dos quais vive. Trata-se da Wolbachia pipientisy. Apesar de ter o poder de decidir qual fêmea pode ter descendência e qual não terá, é considerada um simbionte e não um parasita ou patógeno. A razão é que compensa aquilo com a defesa que oferece a seu hospedeiro contra vários vírus. E se o mosquito não tem o vírus, não pode transmiti-lo aos humanos.
"Numerosas cepas da Wolbachia induzem ao que se chama de incompatibilidade citoplasmática nos insetos nos quais vive. Embora o mecanismo molecular não esteja claro, o que ocorre é que se um mosquito macho com Wolbachia se acasala com uma fêmea sem Wolbachia os ovos não rebentam. Pelo contrário, se tanto o macho como a fêmea contêm a bactéria, os ovos rebentam e os novos mosquitos estarão infectados com Wolbachia. Esse mecanismo proporciona uma vantagem reprodutiva às fêmeas com Wolbachia em relação às fêmeas sem Wolbachia”, explica o entomólogo da Universidade Monash, de Melbourne (Austrália), Iñaki Iturbe-Ormaetxe.
Esse pesquisador basco integra um grupo de cientistas que investiga o uso da Wolbachia para acabar com a dengue, outro vírus que o A. aegypti transmite. A bactéria, presente em até 70% das espécies de artrópodes, não tem esse mosquito entre seus hospedeiros. Por isso, a equipe da qual Iturbe-Ormaetxe faz parte está há anos inoculando diversas cepas da bactéria em mosquitos.
Pesquisadores dos EUA querem desencadear uma reação em cadeia para que todos os mosquitos sejam machos
"No ano 2011 iniciamos a liberação de mosquitos com Wolbachia no norte de Queensland, Austrália, nas localidades de Cairns e Townsville. Esses ensaios se expandiram globalmente e estamos liberando mosquitos em Medellín (Colômbia), no Vietnã, em Yogyakarta (Indonésia) e no Rio de Janeiro", comenta o entomólogo basco. O objetivo final desses testes está claro no nome do site do projeto: Eliminate Dengue: Our Challenge (Eliminar a dengue, nosso desafio), liderado pelo cientista Scott O'Neill.
Aproveitando aquela incompatibilidade citoplasmática, os mosquitos com Wolbachia liberados poderiam desencadear uma reação em cadeia e ir substituindo os que não portam a bactéria. O’Neil e sua equipe acabam de publicar sobre sua última criação. Um mosquito que carrega duas cepas diferentes da Wolbachia. Dessa maneira, fica bloqueada a possibilidade de que o vírus se torne resistente. Seus resultados são muito promissores.
Quatro grupos de mosquitos sem presença viral –um silvestre, outros dois com cepas diferentes da bactéria e um quarto com as duas cepas – foram alimentados com sangue de 43 pessoas com dengue. Segundo publicou a PLoS Pathogens, 42,6% dos silvestres acabaram tendo o vírus em sua saliva, em comparação com pouco mais de 6% dos que tinham uma cepa bacteriana. Entretanto, nos infectados pelas duas cepas de Wolbachia ao mesmo tempo, somente 2,8% tinha o vírus da dengue. Além do mais, a concentração do vírus no abdômen e nas glândulas salivares era muito menor nos mosquitos com Wolbachia, em especial nos protegidos pelas duas variedades da bactéria.
"Apesar de o principal objetivo de nosso programa ser a eliminação da dengue, essa tecnologia é aplicável a outras doenças transmitidas por mosquitos-, já que a presença do Wolbachia no Aedes aegypti também reduz significativamente a transmissão de outros vírus, incluindo o da febre amarela, do chikungunya e do zika”, argumenta Iturbe-Ormaetxe. De fato, estão a ponto de publicar um estudo sobre o uso da Wolbachia para frear o zika.
"Nosso projeto não está direcionado a eliminar os mosquitos, mas a substituí-los por outros que não transmitam esses vírus"
Tanto a manipulação genética com técnicas de gene drive como o uso da bactéria prometem acabar com o mosquito vetor de quatro dos vírus que mais assolam este planeta. Mas enquanto a primeira exige acabar com o mosquito, erradicá-lo, o segundo projeto, como diz o entomologista basco, “não está direcionado a eliminar os mosquitos, mas a substituí-los por outros que não transmitam esses vírus, por isso nosso método não tem impactos no ecossistema: simplesmente estamos eliminando a capacidade do mosquito de transmitir vírus”.
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