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Morre Ornette Coleman, grande libertador do jazz

Saxofonista morreu em Nova York aos 85 anos vítima de uma parada cardíaca

Iker Seisdedos
Ornette Coleman, durante uma apresentação em 2007.
Ornette Coleman, durante uma apresentação em 2007.efe

A capa de um dos discos do lendário quarteto de Ornette Coleman – grande libertador do jazz e extraordinário saxofonista alto, morto nesta quinta-feira aos 85 anos de parada cardíaca em Manhattan – , mostrava os membros da banda olhando desafiadores para a câmera sob um título categórico: This is Our Music. Aquela era sua proposta e só restavam duas opções: embarcar na revolução estética ou deixar passar o trem do progresso.

Passaram 54 anos, e aquela sua música, convulsa e perturbadora, já sonha com o tranquilizador aroma dos clássicos. No dia do desalentador desaparecimento do último sobrevivente daquele irrepetível conjunto sem piano, integrado por Don Cherry, Charlie Haden (1937-2014) e Ed Blackwell (1929-1992), This is Our Music ainda faz jus à segunda faixa do álbum: Beauty is a Rare Thing. A beleza sempre foi um assunto raro nas mãos de um dos músicos mais importantes do século 20, graças a seus experimentos com o ritmo e a harmonia. Como bom exemplo disso pode servir a precoce Lonely Woman, talvez uma das canções mais tristes e bonitas do mundo.

Quando os conservadores anos cinquenta chegavam a seu fim, o saxofonista tinha balançado os alicerces do edifício do jazz tradicional com a ajuda de Cherry (1936-1995) em discos como Something Else!!!! (com quatro exclamações!) ou Tomorrow is the Question!

Trompetista iconoclasta, Cherry, outro grande do gênero, foi o inseparável amigo que remou na mesma direção das primeiras aventuras de ambos nos inferninhos de Central Avenue, em Los Angeles, onde a dupla logo experimentou a amargura da incompreensão.

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Pode-se discutir, de forma tão incansável como inútil, sobre a paternidade daquilo que se chamou free jazz por causa do afã de libertar o gênero de seus espartilhos e levar adiante a revolução do be bop de Charlie Parker e Thelonious Monk. O fato é que as composições de Coleman, como as improvisações de Cecil Taylor, os arranjos orquestrais de Sun Ra, o lirismo de Eric Dolphy e as primeiras viagens fora deste mundo de John Coltrane (com quem Coleman rivalizaria em um disco titulado The Avant-Garde) abriram tantas portas como fecharam janelas para o retorno financeiro e a sobrevivência de uma legião de músicos que, em Nova York, Chicago, Paris, Estocolmo ou Berlim, praticaram uma religião tão devota do novo que houve quem não encontrasse melhor maneira de defini-la que The New Thing.

O corpus da obra que Coleman e seu quarteto original gravaram no início dos anos sessenta para o selo Atlantic dos irmãos Nehusi e Ahmet Ertegun (donos de um faro elástico e infalível) representa uma música tão importante como desafiam a imaginar os títulos que se empregaram para batizá-la. The Shape of Jazz to Come (A aparência do jazz por vir), Change of the Century (Mudança do Século) ou o programático Free Jazz, em que uma action painting de Jackson Pollock convidava, na capa, a entrar em uma música caótica interpretada por dois quartetos opostos, consolidaram a fama de homem indomável do instrumentista e compositor, nascido em 1930 em Fort Worth (Texas), fértil terra de saxofonistas. Ali, no Sul segregado, cresceu como filho de um trabalhador da construção que morreu muito cedo e uma empregada de funerária.

A irrupção de sua figura literalmente dividiu as águas do jazz, uma música que estava a ponto de perder sua influência na cultura de massas com a chegada das reluzentes promessas do pop. O espectro de reações da velha guarda ia, então, do assombro do trompetista Dizzy Gillespie (“Não sei dizer o que ele toca, mas não é jazz”) à completa admiração do pianista John Lewis (“[Sua música] é a inovação mais importante do gênero desde os anos quarenta”).

A escassez de contratos e a incompreensão, quando não diretamente a chacota e o desprezo (esporeados por sonoros desafios de Cherry e Coleman como a decisão de empregar instrumentos de plástico), levaram o saxofonista a retirar-se temporariamente da cena nova-iorquina. “A publicação daquelas composições provocou minha reclusão”, escreveu o saxofonista em 1993 nas notas da edição completa de suas gravações na Atlantic.

O músico reapareceria em gravações realizadas em Londres e Estocolmo e com novas provocações, como o acréscimo do violino e do trompete a sua paleta instrumental ou os trabalhos que publicou com seu filho pré-adolescente Denardo na bateria, quando o guri contava pouco mais de 10 anos, em discos como The Empty Foxhole ou Ornette at 12. Na capa deste último, em que se podia contemplar pai e filho felizes, Ornette vestia um dos característicos ternos azuis, de um azul que nunca deixou de ser elétrico, nem mesmo quando o herói se tornou um respeitável septuagenário sobre quem choviam reconhecimentos como a concessão, em 2007, do Pulitzer de Música por seu álbum Sound Grammar.

Aquele trabalho excepcional coroou uma sólida produção discográfica em que coube quase de tudo; desde trabalhos orquestrais como Skies of America (1971), onde começou a desenvolver sua teoria filosófico-musical harmolódica (fusão de harmonia, melodia e ritmo que permitia a improvisação simultânea de vários intérpretes graças ao emprego da modulação), flertes com os mestres de Jajouka, em Marrocos, intensos duetos (com o Pat Metheny e Charlie Haden) ou excursões para o ritmo (com Prime Time, sua banda mais longeva).

Dentre as muitas coisas em que foi pioneiro está o exercício da autonomia artística dos músicos de jazz; quase sempre conseguiu controlar o destino de seus arriscados projetos desde seus próprios selos ou do loft onde se instalou no final dos anos sessenta no SoHo, um bairro que, na forma boêmia que Coleman e os seus conheceram nos tempos heroicos, morreu há décadas.

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