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MATEMÁTICA

Pi não é igual a 3,14

Os matemáticos comemoram hoje o Dia do Pi, uma constante conhecida há milênios

Um bolo elaborado por um blogueiro em 14 de março de 2010.
Um bolo elaborado por um blogueiro em 14 de março de 2010.Zandar

Em 20 de novembro de 2005, enquanto uma balsa com 10 pessoas a bordo desaparecia na costa de Cádiz, enquanto uma tempestade tropical fazia 11 mortos em Honduras, enquanto o tenista suíço Roger Federer perdia sua primeira partida depois de ganhar 24 finais consecutivas, o chinês Chao Lu recitava números sem parar. Durante 24 horas e quatro minutos, gravado por 26 câmeras e com dezenas de testemunhas da Universidade de Agricultura e Ciências Florestais do Noroeste, na província chinesa de Shaanxi, Chao Lu enunciou de cor 67.890 decimais do número pi. Sua façanha foi registrada pelo Guinness. Não errou nenhum.

“Quando alguém escreve que pi é igual a 3,14 meus olhos choram”, confessa o matemático Javier Cilleruelo, assombrado pelos enigmas milenares que o número oculta. Pi não é igual a 3,14, como aprendemos no colégio. Nem sequer é 3,141592653, a cifra que faz com que hoje seja comemorado o Dia do Pi por representar, segundo a notação anglo-saxã, o mês 3, o dia 14, do ano 15, às 9 horas, 26 minutos e 53 segundos. E pi tampouco é o longuíssimo número memorizado por Chao Lu. “Pi é a razão entre o perímetro de uma circunferência e seu diâmetro”, conclui Cilleruelo, membro do Instituto de Ciências Matemáticas (ICMAT), em Madri. Pi, portanto, é eterno.

Na internet, é fácil encontrar garotos com os olhos vendados recitando de cor os 1.000 primeiros decimais do número pi. Não chegam ao prodígio de Chau Lu, mas têm mérito. “Pi é um número irracional. Não segue nenhum padrão e tem um número infinito de cifras”, explica Cilleruelo. Isto significa que o número de telefone celular ou o RG de qualquer pessoa que esteja lendo este texto provavelmente aparecerá entre os primeiros milhões de decimais do pi, como se pode comprovar em vários sites na internet. O número do telefone celular do ex-presidente do Governo espanhol, José Luis Rodríguez Sapateiro, por exemplo, publicado pelo Wikileaks, aparece a partir do decimal número 85.711.627.

O chinês Chao Lu recitou de cor 67.890 decimais do pi em 2005

No colégio, os alunos calculam quanto deve medir uma cerca para rodear um jardim circular. O número é obtido graças à famosa fórmula 2·π·r, em que r é o raio, a distância da cerca ao centro do jardim. Bastam 39 cifras decimais para calcular o perímetro de uma circunferência capaz de abranger todo o universo conhecido, com um erro menor que o raio de um átomo de hidrogênio. Entretanto, os cientistas não se conformaram constatando 39 casas decimais do pi.

Em 2011, os engenheiros Alexander Yee, norte-americano, e Shigeru Kondo, japonês, calcularam os dez primeiros trilhões de decimais do pi. O computador deles levou quase um ano para completar as operações e estiveram a ponto de fracassar, quando, em 11 de março daquele ano, um terremoto e um tsunami se abateram sobre a costa leste do Japão, matando 18.000 pessoas. A rede elétrica de metade do país ficou destruída, mas o PC que conquistava um novo mundo matemático estava conectado a outra rede.

“Os que tentam buscar mais decimais não são nerds exóticos. Para chegar a trilhões de dígitos é preciso utilizar algoritmos engenhosos, desenvolver uma nova matemática que permitirá resolver outros problemas”, assinala Cilleruelo. O pi é uma prova de fogo no mundo da computação.

Qualquer número de telefone celular ou RG aparece provavelmente entre os primeiros milhões de decimais do pi

O nascimento do pi se perde na noite dos tempos. No Antigo Testamento (III Reis, 7:23), aparece uma aproximação de 3: “Fez desse modo um mar de fundição [uma concha grande para colocar água], de dez côvados de uma borda à outra, perfeitamente redondo, [...] cingido ao redor por um cordão de trinta côvados”. E o matemático grego Arquimedes, célebre por haver supostamente corrido nu pela rua gritando “Eureca!” depois de resolver um problema, calculou o valor de pi como 3,14 há 2.265 anos. Desde então o número não deixou de fascinar os matemáticos. E ainda levanta problemas que não se resolveram.

“Se você pegar todos os números da lista telefônica da sua cidade e os enfileirar, esse número longuíssimo deveria aparecer infinitas vezes no número pi, mas não sabemos se é verdade. É muito difícil demonstrá-lo. E quem o fizer levará uma medalha Fields [o Nobel da matemática]”, aponta Cilleruelo.

Diante do pi, batizado com a letra grega π no século XVII, os matemáticos se sentem como os europeus em Finisterre antes do descobrimento da América. Depois dos 10 trilhões de dígitos, não se sabe o que existe. “No primeiro milhão de dígitos de pi, o número 5 aparece 100.359 vezes. O número 6 aparece 99.598 vezes. Mas não sabemos se o número 5 aparece infinitas vezes em pi”, enfatiza o pesquisador do ICMAT. O 5 poderia desaparecer em algum ponto da infinita réstia de dígitos do pi. Ou não.

“A magia do pi é que aparece em situações alucinantes, nos lugares mais insuspeitos que você possa imaginar”, aponta Raúl Ibáñez, diretor do portal de divulgação científica DivulgaMAT, da Real Sociedade Matemática Espanhola. Ibáñez recorda o problema da agulha de Buffon, proposto em 1777 pelo cientista francês Georges-Louis Leclerc, conde do Buffon.

O número pi pode ser utilizado para calcular o comprimento de um rio

O enunciado é simples. Se você desenhar linhas paralelas no chão e pegar agulhas de mesmo comprimento que a distância entre as retas, a probabilidade de que você lance uma agulha e ela caia em uma das raias é 2 dividido por pi. Não há círculos nessa história, mas lá está o pi.

“A fórmula que calcula a probabilidade de que um grupo de pessoas continue vivo no fim de um determinado número de dias também implica no número pi”, acrescenta Ibáñez com voz ainda surpreendida pela matemática das empresas de seguros que aparecem no livrou O Orçamento dos Paradoxos, publicado em 1915 pelo matemático britânico Augustus De Morgan.

Ibáñez também lembra outro exemplo de arregalar os olhos. Foi descoberto por Hans-Henrik Stølum, geólogo da Universidade de Cambridge (Reino Unido), em 1996. O pesquisador calculou a relação entre o dobro do comprimento total de um rio e a distância em linha reta entre a nascente e a foz. E a relação era de aproximadamente 3,14.

“Nós, matemáticos, nos dedicamos a brincar com coisas como o pi. E, às vezes, a tecnologia avança graças a essas brincadeiras”, afirma Ibáñez com um sorriso.

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