Plano de estímulo do Banco Central Europeu faz o ‘spread’ virar pó
'Plano Draghi' entra em vigor nesta segunda, mas já sacudiu o mercado de títulos Investidores cobram juros maiores dos Estados Unidos do que de Portugal
O mercado aprontou uma das suas na quinta-feira passada: pela primeira vez na história, a rentabilidade que os investidores exigiram dos títulos públicos portugueses com vencimento em 10 anos foi inferior ao valor praticado no caso dos títulos norte-americanos (1,8% contra 2%). Ou seja, cobraram juros mais altos da maior economia mundial, onde o desemprego está abaixo de 6%, do que de um país da zona do euro que precisou ser resgatado e onde a desocupação é o dobro da norte-americana.
Essa ultrapassagem teria chamado mais a atenção em reuniões e jornais se não tivesse acontecido numa semana dominada por outros fenômenos estranhos: o Tesouro alemão conseguiu lançar títulos de cinco anos com juros negativos – ou seja, em que os investidores aceitaram pagar para emprestar o dinheiro, ao invés de receberem dividendos –, enquanto a Itália, que luta para sair da recessão, colocou no mercado papéis a custo zero com resgate no prazo de seis meses.
A chuva de liquidez distorceu os preços da dívida europeia
Um conceito que durante muito tempo foi preocupação quase exclusiva dos mercados emergentes entrou nos últimos anos para o vocabulário dos europeus: spread, ou a diferença entre a taxa de juros de um título de 10 anos em comparação ao mesmo papel emitido por um país considerado um refúgio seguro (no caso europeu, a Alemanha). Esse ágio é considerado um termômetro para a capacidade de solvência de um país, da confiabilidade que ele inspira aos mercados como pagante. Na Espanha, por exemplo, o spread há três anos chegou a superar bastante os 600 pontos básicos (ou seis pontos percentuais), e agora está por abaixo de 100. Mas faz sentido manter esse prêmio de risco para os países europeus, num momento em que a rentabilidade de seus títulos foi rebaixada por causa de um plano de estímulo sem precedentes idealizado pelo Banco Central Europeu (BCE)? A chuva de liquidez no mercado distorceu tanto os preços dos ativos que os spreads se viram mais afetados pelo plano de Mario Draghi, presidente do BCE, do que pelos fundamentos econômicos da zona euro.
Há muito tempo os mercados jogam vitaminados – ou dopados – pelo BCE. Nesta segunda-feira, primeiro dia útil de março, entra oficialmente em vigor o programa maciço de compra de dívida, sobretudo dívida pública, anunciado por Draghi, mas seus efeitos já foram notados. A previsão é que o Plano Draghi, versão europeia do Quantitative Easing (QE, o programa de liquidez que o banco central dos EUA já concluiu), cause uma disparada nos preços dos títulos soberanos, e foi exatamente isso que aqueceu as aquisições dos últimos dias, levando, portanto, a um aumento antecipado. Os investidores se adiantaram ao que está por vir. E, consequentemente, despencou a rentabilidade, ou seja, os juros que os investidores exigem para colocar o seu dinheiro nesses títulos. O plano de Draghi consiste em uma injeção mensal de 60 bilhões de euros (191 bilhões de reais) em títulos de dívida, sobretudo títulos públicos, até pelo menos setembro de 2016.
A onda de aquisições acompanha outras façanhas financeiras chamativas: a Espanha ficou nesta semana a um passo de pagar pela primeira vez juros negativos numa emissão de dívida – títulos com vencimento em três meses –, e a rentabilidade do seu bônus com vencimento em 10 anos chegou ao seu menor valor histórico, 1,24%, ao passo que os papéis alemães parecem não ter um piso, ficando com uma remuneração de apenas 0,3%. A dívida da Irlanda, outra economia resgatada na zona do euro, paga 0,866%, e o castigo dos investidores parece estar agora reservado somente à Grécia, cujos títulos são negociados com juros superiores a 9%.
A ultrapassagem portuguesa sobre os EUA tem suas ressalvas, já que os dois títulos são emitidos em moedas diferentes, e o euro continua sendo mais forte que o dólar. Além disso, como a inflação americana é maior que a europeia os investidores também cobram mais juros nos papéis emitidos por Washington. Mesmo assim, é a menor taxa de juros já conseguida por Portugal.
A Grécia é a única não se beneficia das medidas do Banco Central Europeu
Há quem duvide inclusive de que o BCE consiga encontrar títulos suficientes no mercado para cobrir seu orçamento. É mais provável que os títulos sejam vendidos por bancos, e não por investidores finais, como seguradoras ou fundos, mas tampouco será rápido. Um relatório do Barclays faz uma aposta: se o BCE tiver de adquirir um total de 850 bilhões de euros em dívida pública ao longo do programa (o restante, até alcançar o 1,1 trilhão reservado ao QE, seria para outros ativos), será preciso deslocar um investimento num valor superior a meio trilhão de euros. O Barclays acredita que investidores de fora da zona do euro estarão mais propensos a venderem seus títulos. Mas os grandes detentores de dívida europeia são os próprios bancos da união monetária, e “é improvável que as entidades vendam suas carteiras de dívida soberana e emprestem os recursos imediatamente à economia real, até que o crédito suba de forma mais notável”, adverte o seu relatório. Esse era o objetivo final do famoso Plano Draghi: que os bancos dediquem seus recursos a emprestar. É mais fácil, no entanto, fazer estimativas de curto prazo: por enquanto, a demanda por títulos por parte do BCE elevará mais o preço, e isso explica o apetite nos dias anteriores ao QE. A banca ganha.
Expectativa ou bolha?
A maioria de títulos europeus não para de cair, e isso num momento em que o BCE nem sequer começou a intervir no mercado. Será uma bolha? "Não, não se pode falar de bolha enquanto ela não estourar, mas evidentemente são excessos do mercado", observa José Luis Martínez Campuzano, estrategista do Citi, para quem os juros devem cair inclusive nos títulos da dívida soberana europeia, e a única dúvida seria até quando esse excesso vai durar. "Nisso é preciso olhar para os EUA", responde. "Quando os juros oficiais subirem por lá, os juros daqui encontrarão o piso." Os recordes há meses viraram rotina nos mercados de renda fixa, mas sobretudo desde que Draghi anunciou seu plano. E a distorção nos spreads é um dos sinais mais evidentes. Conforme observa Campuzano, com o programa de compras do BCE afetando toda a dívida e uma parte dos riscos compartilhados, "que diferença há agora entre um banco comprar bônus de um país ou eurobônus? Agora o risco é muito semelhante, por isso os spreads estão assim."
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