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A MEMORIA DO SABOR
Coluna
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O sanduíche da ‘chola’

Esse lanche foi muito além das áreas públicas de La Paz para se tornar um emblema

Doña Cristina, em sua banca em Las Cholas.
Doña Cristina, em sua banca em Las Cholas.

O sanduíche da chola é um desses lanches que sintetiza tudo: o passado e o presente de uma cozinha. Talvez, além disso, a base do que poderá ser uma parte do receituário a ser consolidado quando a gastronomia boliviana decidir voltar-se para o futuro. Por ora, e desde sempre, é a referência em termos de sanduíche vendido nas ruas de La Paz.

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A proposta é simples e até fácil. Uma fatia de pernil de porco curtida em salmoura, condimentada e assada, um pão redondo chamado sarnita, um pedaço de torresmo – pele crocante de porco –, escabeche de cebola e cenoura, uma rodela de tomate e um toque de pimenta ají (tipo dedo-de-moça ou cumari, por exemplo). Nada mais é necessário para fazer o sanduíche que marca os ritmos da comida de La Paz há mais de um século, quando apareceu como uma variante da butifarra peruana; outro tipo de sanduíche ou emparedado – que no Peru também é chamado de sanguche – imprescindível para o receituário do país vizinho. Hoje o sanduíche da chola ultrapassou os limites dos logradouros de La Paz para se transformar em um desses grandes emblemas da comida de rua em boa parte do país, convivendo com empanadas fritas chamadas de tucumanas, sanduíches de linguiça ou espetinhos. Também é uma homenagem às damas de saias rodadas, essas mulheres humildes que são as protagonistas na venda ambulante de comida na capital boliviana.

Doña Cristina prepara e vende centenas de sanduíches da chola todos os dias, no posto de número 6 de Las Cholas (avenida Hernando Siles, Calacoto, La Paz), o parque que concentra o comércio dessa comida típica. Na realidade, Cristina se chama Crecencia Zurita, mas seu nome não era fácil de pronunciar e, por isso, ela adotou o outro na vida comercial. Há cerca de uma dúzia de mulheres que se instalam nos postos que a formalização da atividade – são quiosques estáveis rodeados de áreas cobertas que protegem mesas e cadeiras – transformou em outro ponto turístico da cidade. São só mulheres e todas herdam e transferem o posto de mãe para filha. Às vezes, sobrinhas.

Assim chegou ao negócio Doña Cristina, que o herdou da mãe em 1961 e o deixará para sua filha Mary quando chegar o momento. Por ora, 54 anos depois, continua bem firme à frente de um comércio que levou a família a seguir em frente.

Receita: Fatia de pernil de porco, torresmo, escabeche de cebola e cenoura, tomate e um toque de pimenta ají

A especificidade do sanduíche da chola começa no envoltório, que vem a ser o pão sarnita, um pãozinho redondo, leve e adocicado, cuja massa é preparada com leite em lugar de água. Leva manteiga e é fechado com queijo salpicado na superfície antes de ser assado. Alguns o chamam de allulla, e é o companheiro natural do marraqueta, o outro pão do dia-a-dia dos moradores de La Paz. Há um segundo envoltório interior, em forma de cenoura e cebola em escabeche, em geral complementadas com uma rodela de tomate. E há ainda a llajua – também chamada de llajta, llasjua ou yasgua –, que vem a ser o elemento unificador: um molho à base de locotorocoto, uma pimenta picante – moído em pilão e de tomate, que algumas dessas senhoras preparam com pimenta ají tostada. No centro de tudo está o pernil de porco assado. Curtido em salmoura e condimentado, é assado em forno e deixado para esfriar para que possa ser cortado sem se desmanchar. O contraponto final é um pedaço de torresmo; um complemento que já tem mais de meio século de vida.

É assim em Las Cholas e nos outros pontos tradicionais da comida de rua, patrimônio das vendedoras ambulantes que definem o ritmo dos sabores em La Paz. Entre elas está Paulina Cruz, que instala sua banca sempre na avenida Saavedra, no distrito central, quase no cruzamento com a Estado Mayor, diante do New Georges. É uma das mais antigas e também está entre as mais requisitadas. Vende entre 10 e 12 pernis de porco todos os dias e trabalha todas as tardes das 16h às 21h, ou até que o produto acabe, o que costuma acontecer antes da hora. Nos dias de futebol as vendedoras se concentram ao redor do Estádio Hernando Siles.

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