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A QUARTA PÁGINA
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O fim do antiamericanismo?

Ao restabelecer relações com Cuba, os Estados Unidos recuperaram a legitimidade para defender no continente inteiro valores como a liberdade de expressão, que deve vigorar na ilha e na Venezuela

Enrique Krauze
EDUARDO ESTRADA

Cuba é o epicentro do antiamericanismo na América Latina. Como ideologia política, este nasceu nos tempos da guerra hispano-americana de 1898, alcançou seu apogeu com o triunfo da Revolução Cubana, em 1959, e chegou a seu provável fim em 2014. Embora seja impossível antecipar os resultados do restabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba (as recentes prisões de dissidentes não prenunciam nada de bom), Obama iniciou, apenas com esse ato, o desmonte de uma das mais antigas e arraigadas paixões ideológicas do continente. Ao menos por isso, à margem dos grandes entraves que sem dúvida o acordo enfrentará, o anúncio de 17 de dezembro foi histórico.

Em sua origem, o antiamericanismo na América Hispânica foi de caráter religioso: o defensivo temor dos grupos conservadores e da Igreja a respeito da penetração da fé e da cultura protestantes. A essa variável somou-se, no caso do México, a ofensa da guerra de 1847. Entretanto, os liberais que governaram o país na segunda metade do século XIX mantiveram intacta sua admiração pelos Estados Unidos. Suas ideias republicanas e democráticas eram mais fortes que seus sentimentos nacionalistas. Algo similar ocorreu com as elites progressistas e suas respectivas Constituições no continente. Em um famoso diário de viagem pelos Estados Unidos em 1851, o grande estadista, educador e escritor argentino Domingo Faustino Sarmiento viu nos Estados Unidos a terra do futuro: o triunfo da civilização sobre a barbárie.

A guerra de 1898 uniu os países hispano-americanos contra os Estados Unidos e os reconciliou com a Espanha, da qual todos – exceto Cuba – já haviam se tornado independentes. Como resultado dessa guerra, nossos liberais padeceram de uma síndrome semelhante à dos marxistas após a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética: sentiram-se órfãos. Da mesma forma, vários autores norte-americanos (Mark Twain, William James) viram naqueles fatos uma contradição insolúvel entre os valores democráticos que haviam fundado os Estados Unidos e os desígnios explícitos de que “exista uma só bandeira e um só país entre o rio Grande e o oceano Ártico” (Henry Cabot Lodge, 1895). No caso específico de Cuba, muitos ibero-americanos se negaram a admitir uma independência transformada em protetorado. Foi então que os liberais da América Latina começaram a convergir com os católicos e conservadores na concepção de um nacionalismo ibero-americano de novo cunho: imaginar uma sociedade e uma cultura não só diferentes, mas também militantemente opostas à norte-americana.

Entre 1898 e 1959, com raras exceções, o balanço político, diplomático, econômico e militar dos Estados Unidos na América Latina foi francamente desastroso. Em 1913, o embaixador norte-americano Henry Lane Wilson – esquecido na história norte-americana, mas muito recordado nos livros-textos mexicanos – planejou o golpe de Estado que derrubou o primeiro presidente democrata do México: Francisco I. Madero. Esse episódio foi representativo de muitos outros: desembarque de marines, ocupações militares, estímulo a golpes de Estado e, junto com tudo isso, a esmagadora presença das grandes corporações norte-americanas. Nos Estados Unidos, a sujeição da diplomacia às grandes empresas (petroleiras, açucareiras, mineradoras) era vista como algo normal, mas para esses países era uma atitude de intolerável cobiça.

Franklin D. Roosevelt corrigiu parcialmente o rumo com sua ‘política da boa vizinhança’

Como reação, a região viveu uma ascensão do nacionalismo tanto local como continental, que os presidentes norte-americanos do período entreguerras (Coolidge, Hoover) leram como uma antessala do comunismo. Oportunamente, em 1927, Walter Lippman os advertiu do seu erro: “O que os ignorantes chamam de bolchevismo é nacionalismo, e é uma febre mundial”. E acrescentou: “Nada indignaria mais os latino-americanos, e nada seria mais perigoso para a segurança norte-americana, que a América Latina acreditar que os Estados Unidos adotaram, à maneira de Metternich, uma política destinada a consolidar interesses estabelecidos que atentem contra o progresso social desses países, tal como eles o entendem”.

Com sua política da boa vizinhança, Franklin D. Roosevelt corrigiu parcialmente o rumo (sabiamente tolerando, por exemplo, a nacionalização do petróleo no México), mas em Cuba aquela vinculação entre negócios e política foi contínua, substancial e visível: de fato, vários ministros de Roosevelt tinham interesses açucareiros. Contudo, a cooperação pan-americana alcançou seu melhor momento na Segunda Guerra Mundial.

No início da Guerra Fria, o nacionalismo ibero-americano se orientou para as diversas variantes do marxismo. Muitos atribuíam a pobreza e a desigualdade à presença norte-americana e consideraram que o socialismo era uma alternativa. Para cúmulo, ditaduras militares como a dos Somoza contavam com a cumplicidade ativa do Governo norte-americano. Como resultado, os Estados Unidos terminaram por ficar desacreditados como fonte de valores democráticos. Os poucos defensores desses princípios ficaram isolados. Um desses liberais solitários, o historiador Daniel Cosío Villegas, profetizou em 1947, para seu pesar, que “a América Latina ferverá de desassossego e estará pronta para tudo. Levados por um desalento definitivo, por um ódio aceso, estes países, ao parecerem submissos até a abjeção, serão capazes de algo: de acolher e incentivar os adversários dos Estados Unidos, a se transformarem eles próprios no mais inflamado de todos os inimigos possíveis. E então não haverá maneira de submetê-los, nem sequer de amedrontá-los”.

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A Revolução Cubana cumpriu pontualmente essa impressionante profecia e abriu um ciclo de intenso antiamericanismo em todo o continente. A fugaz Aliança para o Progresso iniciada pelo presidente Kennedy e os tardios esforços conciliadores de Jimmy Carter empalideceram frente ao rancor provocado pelas duras administrações republicanas. A intervenção direta do Departamento de Estado no golpe contra Salvador Allende deixou uma ferida profunda, que terminou por incitar duas gerações de jovens, em quase todo o continente, a partirem para as serras empunhando fuzis e emulando Che Guevara e Fidel Castro. Os abusos da Administração Reagan na América Central acirraram ainda mais os ânimos. Nas universidades, jornais, livros e revistas da América Latina, o ódio ideológico contra o imperialismo ianque se tornou canônico. E, para o regime totalitário em Cuba, o antiamericanismo foi a sua melhor arma de sobrevivência.

Em 1989, o Ocidente se maravilhou com a queda do Muro de Berlim e o iminente desaparecimento da URSS. Prestou pouca atenção a outro milagre: as unânimes transições democráticas da América Latina (Chile, Nicarágua, El Salvador e, com o tempo, o México), conquistadas internamente, sem apoio nem inspiração dos Estados Unidos. Agora eram os marxistas que se sentiam órfãos de ideologia, e esse vazio foi preenchido – até certo ponto – pelo quase esquecido ideário democrático liberal ou social-democrata.

A dinastia dos Castro manteve Cuba isolada e presa durante 56 anos

Embora não vá jamais desaparecer do horizonte, o antiamericanismo começou a sair de moda no final do século passado. O histrionismo incendiário de Hugo Chávez contra “o império” o manteve artificialmente. Mas era (e é) difícil dissimular o caráter anacrônico do discurso chavista contra seu principal cliente petroleiro. Só restava a divergência com Cuba. Já era hora de resolvê-la.

Mas ao restabelecer relações com Cuba, ao renunciar claramente ao seu destino imperial na zona, os Estados Unidos recuperaram também a legitimidade moral para referendar os valores republicanos e democráticos que fundaram esse e todos os países da América. O arraigo desses valores foi o verdadeiro sonho de Martí, que sempre rejeitou a tirania. E, entre esses valores, nenhum é mais prioritário que a liberdade de expressão. Nenhum povo é uma ilha inteira por si mesmo. A dinastia dos Castro manteve Cuba isolada e presa por 56 anos. Na próxima reunião da Organização de Estados Americanos (da qual participarão Cuba e Estados Unidos), a liberdade política em Cuba (e na Venezuela) deverá ser o primeiro item na pauta.

Enrique Krauze é escritor e diretor da revista Letras Libres.

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