A imparável degradação da USP
A melhor universidade pública do país, que figura no topo de rankings internacionais, acaba de sair de uma greve – mas parece longe de superar graves problemas
B.A.*, de 23 anos, está cursando o quinto ano de Filosofia da Universidade de São Paulo, uma das melhores universidades públicas do país e da América Latina, mas não vê a hora de sair de lá. Ela já concluiu o bacharelado e, no ano que vem, pretende terminar a licenciatura e então “deixar a bolha” que diz que é a vida na universidade – com suas greves constantes, violência crescente, inchaço de alunos e falta de professores, entre outros problemas que indicam uma degradação que, neste momento, parece difícil de se reverter.
A greve de 116 dias que congelou a instituição entre maio e setembro deste ano foi a maior das paralisações de sua história, mas não foi motivada diretamente por esse quadro geral. Estourou quando o atual reitor, Marco Antonio Zago, comunicou professores e funcionários que não haveria reajuste salarial em 2014 para acompanhar a inflação. O motivo para uma medida tão impopular? O fato do orçamento da universidade de 5 bilhões de reais estar 106% comprometido com a folha de pagamento, fazendo com que ela viva atualmente de reservas financeiras.
Não é fácil entender a USP, tão amada e odiada, assim como é difícil aceitar que estudantes admitidos depois de muito esforço saiam decepcionados de uma instituição que figura bem na maioria dos rankings universitários nacionais e internacionais. O que se sabe é que ela vive uma crise que vai muito além da última greve trabalhista.
Muitos a acusam de só abrir suas portas aos privilegiados, mas para B.A. não foi esse o problema: ela é uma das raras pessoas que passaram no concorrido vestibular da casa, a Fuvest, tendo sido aluna da rede pública em Araraquara e, inclusive, repetido um ano letivo. “Nessa época, a escola não me interessava. Mas eu lia muito, fiz um cursinho popular em uma ONG e entrei”, explica.
Filha de um eletricista e de uma auxiliar de enfermagem, B.A. foi obrigada a condicionar sua vida uspiana a um lugar no conjunto residencial da universidade, o CRUSP – que abre apenas cem vagas por ano, sendo que a cada vestibular entram mais de 10.000 novos alunos. Mas mesmo quem não precisa de auxílio de moradia sabe que a USP é um bolo que não cresce o suficiente para atender todos os que disputam uma de suas fatias. A instituição completou 80 anos em 2014, alcançando a marca de 15 alunos por professor (há 20 anos, essa relação era de nove para um) e deixando a imensa maioria de jovens que concluem o ensino médio no estado – 460.000 ao ano – fora de suas fronteiras.
Quando B.A. finalmente conseguiu uma vaga no CRUSP, teve de enfrentar as dificuldades na Filosofia, aonde entram 180 novos estudantes por ano, a maioria de classe média. No primeiro ano, ela se espantava com a recomendação dos professores de ler Descartes de preferência em francês e latim, ao passo que os cursos de idiomas gratuitos tinham desparecido há anos da Letras (aonde ingressam 900 ao ano). “Coisas assim são comuns. É um curso elitista, pensado para quem não precisa trabalhar”.
Mesmo em português, para ela já não era fácil conseguir material didático. Sua salvação foram as bibliotecas e as fotocópias ilegais e, a partir de 2013, a bolsa-livro – uma das medidas do reitor anterior, João Grandino Rodas, considerado um “populista” que estourou o orçamento da instituição criando uma série de benefícios e famoso, também, pela violência. “Os benefícios ajudaram. O problema do Rodas era a repressão”, opina.
Em 2011, quando Rodas autorizou a atuação da Polícia Militar no campus, antes impedida de entrar, ficou famosa uma ocupação da reitoria por estudantes que enfrentaram policiais várias vezes. Uma vez, Bêlit conta que estava saindo à noite de uma festa com amigos, nada relacionado à ocupação. “Todos saímos correndo da PM, mas dois caras ficaram para trás. Terminaram retidos, apanharam bastante e tiveram o cabelo raspado”, relata. Segundo B.A., são episódios comuns, motivados muitas vezes pelo preconceito a certas faculdades, especialmente a FFLCH. “Eu acordava quase todos os dias com cheiro de bomba.”
Mas a repressão policial não é a única cara da violência na USP, que vem aumentando muito. O número de roubos mais do que dobrou em 2014 (70 ocorrências de janeiro a agosto, contra 30 em 2013, segundo dados da Guarda Universitária – hoje responsável só pelo patrimônio da universidade. Também são registrados estupros, atropelamentos e até mortes, como a do estudante Victor Hugo Marques Santos, de 20 anos, aparentemente assassinado e jogado na raia olímpica do CEPEUSP depois de uma festa organizada pelo Grêmio da Escola Politécnica, da qual participou.
Muitos defendem que a Polícia Militar não entre no campus, graças à sua “mão pesada”, mas o fato é que ela anda sendo bastante solicitada, diz B.A.. Ela mesma foi vítima de uma figura conhecida por lá e que um dia tentou atacá-la. “Ele tem fama de skinhead e parasita o CRUSP há uns 10 anos, apesar de não ser morador”. Mesmo depois de denunciar a agressão para a SAS, o serviço social da USP, nada foi feito, assim como quando a polícia é solicitada. “Eles vêm repreender, mas não prestam apoio quando é preciso”, desabafa a estudante, desanimada.
O desânimo de B.A. também é visível quando Zago, o atual reitor, defende que o problema da USP são basicamente seus salários. A notícia dominou a imprensa nos últimos meses, incitando velhos debates, como a cobrança de mensalidade e a privatização de serviços que sempre ressurgem como saídas para salvar a instituição.
Segundo ela, o que mantém a universidade e que não pode ser perdido é a qualidade de seus professores e de seus estudantes, que vivem condições cada vez mais difíceis para seguir adiante com aulas e pesquisas. Sem muito mais o que dizer, ela pelo menos terá um diploma nas mãos, que, nos meios acadêmico e profissional, ainda tem seu valor. Já o futuro da própria universidade, ninguém pode prever.
* O nome foi preservado a pedido da fonte.
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