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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

As novas funções do Velho Mundo

O predomínio crescente da China não anula a importância da União Europeia

Joseph S. Nye

O ascenso da China colocou muitas questões para o Ocidente e alguns se perguntam se o país está destinado a usurpar o papel de direção mundial de uma Europa em apuros. Como disse um comentarista, “os governos europeus não podem fazer muita coisa na Ásia oriental, a não ser assumir cargos de diretores de suas empresas nacionais”. Sem influência diplomática e militar para causar impressão nessa região, o melhor é que a Europa deixe que os Estados Unidos carreguem o maior peso, mas não precisa ser assim.

Para a Europa, as consequências da ascensão da China são transcendentais, começando pela mudança do “eixo” estratégico para a Ásia por parte dos Estados Unidos. Depois de mais de 70 anos como prioridade máxima dos EUA, a Europa está começando a perder sua privilegiada posição para as autoridades norte-americanas. Além do mais, as vendas europeias de produtos de tecnologia avançada e de duplo uso que complicam o papel dos Estados unidos em matéria de segurança vão criar fricções.

Apesar de tudo, as advertências de que a associação atlântica está implodindo são exageradas. Acaba sendo revelador que o governo do presidente dos EUA, Barack Obama, tenha substituído o termo “eixo”, que possui um distanciamento de algo, por “reequilíbrio”. Essa mudança reflete um reconhecimento de que o predomínio econômico cada vez maior da China não anula a importância da União Europeia, que continua sendo a maior entidade econômica do mundo e a principal fonte de inovação econômica, para não falar de valores como a proteção dos direitos humanos.

Com isto não quero dizer que a ascensão da Ásia não exija ajustes. Quando começou a Revolução Industrial, a porcentagem da economia mundial correspondente à Ásia começou a diminuir de mais de 50% para apenas 20% em 1900. Na segunda metade deste século, espera-se que a Ásia recupere seu predomínio econômico anterior - quer dizer, que chegue a 50% da produção mundial - e ao mesmo tempo tire da pobreza centenas de milhões de pessoas.

A Europa deve vigiar e limitar as exportações delicadas

Essa mudança de poder - talvez a mais transcendental do século XXI - incorpora graves riscos. Os historiadores advertem com frequência que o temor e a incerteza criados pela ascensão de novas potências como a China podem desencadear conflitos graves, como o que a Europa experimentou há um século, quando a Alemanha superou o Reino Unido em produção industrial. Com a Ásia dividida por disputas territoriais e tensões históricas, a tarefa de manter um equilíbrio de segurança estável não será fácil, mas há fatores que podem ajudar com isso.

No decênio de 1990, quando o governo do presidente dos Estados Unidos Bill Clinton estava analisando como reagir ao crescimento econômico da China, alguns o convenceram a adotar uma política de contenção. Clinton rechaçou essa recomendação: teria sido impossível criar uma aliança anti-China, pelo desejo dos vizinhos da potência asiática de manter boas relações com ela; o mais importante é que semelhante política teria garantido uma inimizade futura com a China.

No lugar, Clinton optou por uma política que poderíamos chamar de “integrar e assegurar”. Enquanto a China era aceita na Organização Mundial do Comércio (OMC), os Estados Unidos reativaram seu tratado de segurança com o Japão.

A China não é um Estado revisionista, desejoso de acabar com a ordem internacional estabelecida

Se a China aplicar uma “ascensão pacífica”, seus vizinhos vão se concentrar na criação de fortes relações econômicas com ela. Se abusar de seu poder na região, coisa que, segundo dizem alguns, indicam suas recentes ações na fronteira com a Índia e nos mares da China Oriental e Meridional, seus vizinhos vão procurar equilibrar esse poder, com o respaldo de uma presença naval norte-americana.

Como a Europa se encaixa nesse panorama? Para começar, deve vigiar e limitar as exportações delicadas, com o objetivo de não tornar mais perigosa a situação da segurança para os Estados Unidos. Mesmo do ponto de vista comercial, a estabilidade regional e rotas marítimas seguras são interessantes para a Europa.

Além disso, a Europa pode contribuir para o desenvolvimento das normas que modelam a situação em matéria de segurança. Por exemplo, a Europa pode desempenhar um papel importante no reforço de uma interpretação universal da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, em lugar da versão idiossincrática da China, sobretudo em vista de que os Estados Unidos ainda não ratificaram esse tratado.

Ao contrário das afirmações de alguns analistas, a China não é um Estado revisionista, como a Alemanha nazista ou a União Soviética, desejoso de acabar com a ordem internacional estabelecida. Na verdade, não traria nenhum benefício para a China a destruição das instituições internacionais - como, por exemplo, as Nações Unidas, a OMC e o Fundo Monetário Internacional - que contribuíram para facilitar sua ascensão. Por causa dos destacados papéis que a Europa desempenha em ditas instituições, ela pode ajudar a China a conseguir a legitimidade multilateral à qual aspira, em troca de um comportamento responsável.

Embora a China não esteja tentando derrubar a ordem mundial, está passando agora por uma profunda - desestabilizadora - transformação. Com o aumento de problemas transnacionais, como a mudança climática, o terrorismo, as pandemias e a ciberdelinquência, provocado pelo rápido progresso tecnológico e consequente mudança social, o poder está se espalhando, mas não entre os Estados, entre uma grande diversidade de entidades não-governamentais. Para abordar essas ameaças, será preciso uma ampla cooperação internacional, na qual China, Estados Unidos e Europa desempenharão, todos eles, um papel importante.

Por último, não devemos esquecer a questão dos valores. A Europa, junto com os Estados Unidos, já resistiu às exigências chinesas (e russas) de uma maior censura na Internet, e países europeus como Noruega e Alemanha aceitaram golpes econômicos em nome dos direitos humanos.

Apesar de ser impossível prever como evoluirá a política chinesa, as experiências de outros países indicam que a mudança política acontece com frequência quando a renda per capita chega aos 10.000 dólares, aproximadamente. Se esta mudança acontecer, a Europa terá a possibilidade de fomentar seus valores básicos com uma eficácia ainda maior.

Ainda não sabemos se o interesse econômico da China em uma ordem mundial imparcial baseada no Estado de direito proporcionará uma maior proteção dos direitos individuais. Só a China poderá decidir isso, mas a Europa pode contribuir.

Joseph S. Nye, Jr. é professor em Harvard e autor de The Future of Power (O futuro do poder).

© Project Syndicate, 2014.

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