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Somos todos coniventes

O Poder Público é tão distante da realidade dos brasileiros que perdemos a noção para que servem os mandatos

Dia desses, um taxista do ponto da minha rua comentou, entediado, Este ano tem eleição... Aí os políticos vêm com aquela conversa mole, querendo nosso voto... Eles só lembram da gente de quatro em quatro anos... E eu respondi, Mas você também só se lembra deles de quatro em quatro anos... O Poder Público reside tão distante da realidade da maioria dos brasileiros que perdemos completamente a noção não só de para que servem os mandatos que delegamos a vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais, senadores, governadores e presidente da República, como também esquecemos que somos nós os responsáveis pela qualidade dos políticos que elegemos. A composição dos poderes legislativo e executivo de alguma maneira é um espelho fiel no qual nos recusamos a nos ver refletidos.

A corrupção da qual acusamos os políticos é um câncer que corrói toda a sociedade brasileira, sem distinção, por mais que teimemos em, individualmente, rechaçar essa acusação. É sempre mais fácil lidarmos com algo que encontra-se no horizonte, como possibilidade, que admitirmos nossa participação efetiva em algo que condenamos. Por isso, aceitamos que existe uma grossa corrupção “lá” em Brasília, mas nos ofendemos quando alguém ilumina-a em nosso cotidiano.

Uma vizinha de minha família, em Cataguases, dona Marlene, tinha um filho, M.V., que logo ao adentrar a adolescência aderiu a uma turma que fumava maconha e praticava pequenos furtos nas redondezas. Alertada pelas amigas, dona Marlene enfureceu-se e disse que aquilo não passava de intriga absurda, que M.V. era um ótimo menino e que nunca andaria com “gente que não presta”. Com o tempo, descobriu que M.V. se relacionava sim com “gente que não presta”, mas candidamente explicava que o filho era um rapaz tão bom que, embora fizesse parte da turma visada pela polícia, não fumava maconha nem praticava pequenos furtos, mas tentava reconduzir os colegas para o bom caminho. Dona Marlene só se convenceu de que M.V. usava drogas e praticava roubos, quando ele foi morto numa disputa de gangues. Mas aí já era tarde demais.

Esse tem sido nosso comportamento em relação à corrupção. Reprovamos o comportamento dos políticos, que se enriquecem com negociatas sem temer qualquer punição, pois sabem eles, sabemos todos, que o direito no Brasil ainda se baseia em três premissas clássicas, que compõem o catálogo da sabedoria popular: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, “para os amigos, tudo, para os inimigos, os rigores da lei”, “a cadeia serve apenas para os três pês: preto, pobre, prostituta”. A legislação é costurada de tal maneira confusa e contraditória que pode ser usada contra ou a favor, dependendo do poder que emana da pessoa julgada. Nesse sentido, a mão da justiça quase nunca alcança os ricos... Mas os pobres são tratados aos pontapés...

O exercício da corrupção está de tal maneira arraigada na cultura brasileira que muitas vezes nem percebemos que repetimos em nosso dia a dia hábitos e práticas que censuramos nas esferas da administração pública. O Brasil é o segundo país do mundo em sonegação fiscal, só perdendo nesta categoria para a Rússia. Estima-se que os brasileiros sonegam cerca de 28% do total da arrecadação de impostos, o que representa 13% do PIB. Quantos profissionais liberais que conhecemos que recebem “por fora” para prestar um serviço, ou seja, não emitem recibo, com a nossa conivência? Quantos de nós declaram ao Fisco exatamente o que recebemos como pagamento?

E quantas vezes já deixamos “uma cerveja” para o policial rodoviário “quebrar o galho” e não nos multar nas estradas? Quantas vezes demos “um cafezinho” para ser melhor tratados num ambiente social? Quantas vezes aumentamos o valor da gorjeta em restaurantes para que o garçom nos sirva com mais eficiência? Quantas vezes usamos de nossa influência para resolver algum problema burocrático em algum órgão público? Quantas vezes burlamos a legislação? Quantas vezes, enfim, usamos o tal “jeitinho brasileiro” para resolver nossos problemas?

Enquanto não admitirmos que a prática da corrupção impregna nosso cotidiano e que somos coniventes com ela, não conseguiremos dar o passo seguinte que é o de elegermos políticos comprometidos com uma plataforma de alcance coletivo e não políticos cujos interesses limitam-se a projetos de manutenção de poder, sejam eles particulares ou partidários. E temos que pensar em resolver isso logo, antes que, como no caso da nossa vizinha em Cataguases, seja tarde demais.

Luiz Ruffato é escritor

Leia, toda quarta-feira, uma nova crônica aqui, na edição Brasil do jornal EL PAÍS

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