Refundação e biodiversidade
O espírito de refundação parte da iniciativa bolivariana de Hugo Chávez na Venezuela e mostra certa força de arrasto na América Latina
A biodiversidade da América Latina mostrou ser demasiado ampla para que as elites nacionais possam digeri-la, tornando insuficientes todas as tentativas de definir uma ou mais identidades político-culturais, empreendidas desde as independências nos princípios do século XIX. Nos últimos anos, entretanto, a última operação batismal se congrega em torno de uma nova senha: refundação.
No início de 1800 duas visões, ambas exclusivamente nativas, lutavam entre si para definir a América Latina: a hispano-católica e a francesa ilustrada; em meados do século parecia ter se imposto esta última, expressa com grande propriedade em Civilización y Barbárie do argentino Domingo Sarmiento; a derrota da Espanha diante dos EUA em 1898 provocou um animado ressurgimento– Ariel do uruguaio José Enrique Rodó – dos costumes hispânicos dentro da coletividades latina, supostamente superiores ao individualismo possessivo dos EUA; e com a revolução mexicana de 1910 buscou-se encontrar a resposta total com o indigenismo de La raza cósmica – de José Vasconcelos – embora o branco europeu fosse quem continuava tomando todas as decisões. Os dois grandes elementos da união foram durante todo esse tempo o catolicismo e a língua castelhana.
O espírito de refundação, com o catolicismo cada dia mais em desvantagem pelo auge evangélico, parte da iniciativa bolivariana de Hugo Chávez na Venezuela e mostra certa força de arrasto. O Equador de Rafael Correa compra nominalmente a ideia e a Bolívia a indigeniza impregnando-a de restauração pré-colombiana. Mas outras refundações sui generis, e não só de esquerda, estão em curso. Juan Manuel Santos ousa falar em “refundar” a Colômbia e, se o processo de paz com as Farc tiver êxito, um país muito distinto deveria vir à luz; a reformulação de Enrique Peña Nieto quer fazer do México uma máquina de capitalismo plenamente competitivo, o que equivaleria a um recomeço; o fim do cristino-peronismo, que a oposição liberal-conservadora promete e fervorosamente deseja na Argentina, poderia supor um novo capítulo da história do país; e tanto o Brasil com Lula e Rousseff como o Chile com Bachelet se dizem presidências inovadoras: a primeira por conseguir uma hegemonia ibero-americana que a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos colocarão a prova; e a segunda fazendo uma limpeza constitucional que despinochetize o país. Inclusive Cuba, com a conversão capitalista em câmera lenta, poderia ser classificada entre as refundações de extrema modéstia.
A Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos vão por a prova a hegemonia ibero-americana do Brasil
Em Honduras, El Salvador e Guatemala qualquer repensar histórico passaria inevitavelmente pela derrota das máfias do narcotráfico, também presentes na Colômbia e no México; e na Nicarágua o acompanhar a onda bolivariana é antes de mais nada um negócio de importação. O resto da América Latina, com a relativa exceção do Uruguai com seu presidente ex-tupamaro que liberaliza o consumo de maconha, permanece numa posição de indolente decúbito. A amálgama de raças e legados culturais que se expressa nessa transbordante biodiversidade venceu até hoje qualquer tentativa de refundar a América Latina.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.