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Diário de uma internação em um hospital subsidiado pelo governo de São Paulo

EL PAÍS acompanha por cinco dias a rotina de uma idosa dentro de uma unidade do Governo paulista Pacientes são colocados no corredor à espera de uma vaga, enquanto internados aguardam por médicos que só trabalham meio período

Até mesmo as refeições são servidas no corredor do hospital. / T.B
Até mesmo as refeições são servidas no corredor do hospital. / T.B

“Um médico. Eu só quero um médico.” Os gritos de um senhor de calça e camisa sociais, bigode castanho-avermelhado espesso e mãos impacientes que se cruzavam na frente do corpo em movimentos rápidos, invadiam numa noite de quinta-feira deste mês de abril, o corredor de uma ala do hospital do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe), na zona sul de São Paulo. A unidade de saúde, gerida pelo Governo paulista, recebe subsídio do Estado para atender funcionários e ex-funcionários públicos e seus dependentes.

Passava das 18h e, minutos antes, eu havia entrado por aqueles corredores como acompanhante de uma paciente de 70 anos, professora da rede estadual aposentada, com dores no peito. A partir daquele momento, ficariam claros alguns dos motivos que levam a saúde a estar no topo das reclamações dos cidadãos brasileiros, segundo levantamentos feitos pelos principais institutos de pesquisa do país, como Datafolha ou Ibope. Esses dados transformaram a área em uma das prioridades nas eleições presidenciais e estaduais deste ano. Em São Paulo, o atual governador, Geraldo Alckmin (PSDB), médico e responsável pela administração do Iamspe, disputará a reeleição com o ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha (PT), que, após as fortes críticas feitas pela população ao Governo Dilma Rousseff (PT), apadrinhou o Programa Mais Médicos, que importa profissionais estrangeiros, a maioria de Cuba, para trabalhar em áreas remotas do país. As reclamações também se estendem pelo setor privado, onde, em um pronto-socorro, a espera pode superar seis horas.

A paciente que acompanho chegara ao pronto-socorro às 11h daquela quinta-feira e, após uma série de exames, recebeu dos médicos a notícia de que seria internada. Mas não havia vagas. Todos os leitos da ala de cardiologia estavam ocupados.

- Você vai ter que esperar no corredor até surgir uma vaga, informa a enfermeira à paciente, em um tom burocrático de quem parece acostumada com a rotina.

- E quanto tempo pode demorar isso? Ela pode ter que dormir no corredor?, pergunto.

Em São Paulo, o atual governador, Geraldo Alckmin (PSDB), médico e responsável pela administração do Iamspe, disputará a reeleição com o ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha (PT), que apadrinhou o Programa Mais Médicos

Recebo de volta um “sim”, agora um pouco constrangido.

A paciente recebe um pijama e um avental e é colocada numa maca, que é coberta com um fino colchão e um lençol limpo. A maca, então, passa por uma porta e entra em um corredor lotado, com ao menos dez outras macas, que ocupam os lados direito e esquerdo da passagem. É deixada nos fundos, próxima à enfermaria D, onde uma dezena de pessoas, entre pacientes e seus acompanhantes, aguardam. Na frente, há duas salas com pacientes isolados devido a alguma doença contagiosa e, ao fundo, está a enfermaria psiquiátrica, onde estão quatro homens e quatro mulheres, divididos por sexo em duas salas separadas.

Um deles é o senhor do bigode, ainda vestido com as roupas de “fora”, que minutos depois irrompe em uma gritaria em busca de um médico. Os gritos trazem três seguranças, que o levam de volta à cama, sem violência. Ele é medicado e parece dormir.

No grupo dos “sem-vaga” a maioria é idosa. Há alguns cardíacos, como a paciente que acompanho, alguns têm dor, como um homem de uns 40 anos que tem o ombro quebrado, além do grupo de pacientes com problemas psiquiátricos, que zanzam para cima e para baixo, pelo corredor, às vezes interagindo com outros pacientes, às vezes conversando sozinhos, às vezes, exaltados.

A falta de leitos de internação é um problema crônico no hospital, segundo relatos dos pacientes, e já levou pessoas a esperarem até cinco dias em uma cama naquela enfermaria. E, na falta de espaço ali, restam os lugares improvisados no corredor, algo comum, como contam os próprios funcionários. “Hoje até que está bom, tem dias que isso aqui é bem pior”, desabafa uma das enfermeiras, resignada e prestativa, apesar do excesso de trabalho, como todos os funcionários que encontraríamos por ali.

Apesar dos três seguranças que guardam a entrada desta área, não há muito controle de quem passa por ali. No meio da confusão, uma senhora circula pelos corredores entregando, de maca em maca, um livrinho com propaganda de uma igreja

Logo após às 18h, chega o jantar: arroz, purê, carne moída, feijão, curau de sobremesa e um suco com gosto muito doce. A combinação de talheres de plástico e bandeja apoiada nos joelhos não facilita a refeição. Um paciente prefere comer de pé, com a sua bandeja apoiada sobre a maca. Outro, um dos que está na enfermaria psiquiátrica, se acomoda no chão e é repreendido pela enfermeira. Mais cedo, ele havia circulado com papeis picados na mão.

- Rasguei a Constituição, quer um pedaço?, oferecia, em uma interjeição um tanto quanto lúcida.

Após o jantar, um paciente idoso que estava em um dos leitos de isolamento sai e caminha por todo o corredor, com as fraldas sujas de fezes, que chegam a escorrer pelo chão. Quando já estava quase de volta na porta de seu quarto, é flagrado por uma enfermeira, que o coloca de volta em sua maca e chama um faxineiro, visivelmente sobrecarregado. A porta é trancada com um cadeado e as manchas de sujeira ficam no corredor por 19 minutos.

Apesar dos três seguranças que guardam a entrada desta área, não há muito controle de quem passa por ali. No meio da confusão, uma senhora circula pelos corredores entregando, de maca em maca, um livrinho com propaganda de uma igreja pentecostal e algumas orações. Olha pra mim e, sorrindo, diz:

- Eu nem podia estar aqui, mas errei o caminho e aproveitei. Depois se afasta, calmamente, e continua a tarefa.

Os pacientes psiquiátricos também circulam livremente, inclusive para fora daquele espaço. Questionado posteriormente pela reportagem, o diretor do hospital, Roberto Dantas Queiroz, explica que eles estavam em atendimento clínico, por isso estavam junto aos demais pacientes. Por volta de 20h30, o senhor do bigode espesso, que mais cedo havia sido contido pelos seguranças, acorda e começa a andar, impaciente, de um lado para o outro. Já usa o pijama do hospital e as calças estão sujas de urina.

Pacientes são internados no corredor do hospital. / T.B
Pacientes são internados no corredor do hospital. / T.B

Puxo papo com o vizinho de maca, o homem de 40 anos com o ombro quebrado que também tem trombose no pé. Ele está internado pela segunda vez em menos de 15 dias para realizar uma biópsia que descobrirá se o osso de seu ombro quebrado partiu tão facilmente por causa de um tumor –na primeira biópsia, conta ele, o material recolhido não foi suficiente para análise.

A essa altura, a impaciência do paciente do bigode espesso passa a ser expressa em palavras. Primeiro, murmúrios quase inaudíveis, que em pouquíssimo tempo evoluem para gritos que suplicam, novamente, o atendimento de um psiquiatra.

- Eu já devia estar em casa com a minha mãe, berra ele.

A cena não demora muito para ganhar contornos de um pastelão hospitalar. O paciente que havia “rasgado a Constituição” se aproxima dele com uma bíblia. Com o livro em riste, começa a pregar, em uma espécie de competição de berros:

- Segue Jesus que ele tem poder!

Os três seguranças voltam e se aproximam dos dois. O da bíblia se afasta e abaixa o livro. O de bigode, apesar de contrariado, não resiste e volta para a cama, onde é sedado novamente. As pessoas que haviam saído de suas macas, algumas que tentavam descansar apesar do barulho constante e da luz forte, voltam a dormir.

A burocracia desses processos acaba mantendo pacientes internados além do tempo necessário, apesar da existência da fila para a internação que leva pessoas em estado grave a esperarem no corredor por mais de uma noite

Às 22h10, cinco horas depois de a maca ser colocada no corredor, conseguimos chegar ao quarto – um lugar espaçoso, para duas pessoas, banheiro limpo e uma cama mais confortável. Pergunto à enfermeira se algum cardiologista ainda verá a paciente, mas àquela hora já não havia mais médicos da especialidade. Descubro que eles só passam no horário da manhã. Saio no corredor para pedir um cobertor, mas não há nenhum disponível. Na manhã seguinte, peço um travesseiro extra. Também não tem.

São 7h40 da sexta-feira quando o médico entra no quarto. Atencioso, faz uma série de perguntas e diz que pedirá três exames: um Holter 24h (aparelho que fica no paciente por 24 horas para medir a frequência cardíaca), um teste ergométrico (para verificar a existência de alguma doença coronariana) e um exame de sangue (para afastar de vez a existência de um infarto).

Em seguida, descobrimos mais sobre o funcionamento do hospital: quem faz os exames é o ambulatório, que funciona em horário comercial (até sábado à tarde). Àquela altura, todos os aparelhos para o Holter 24h que seriam usados no sábado já estariam destinados. Por isso, na estimativa mais otimista, ele só seria colocado na segunda o que faria com que o exame terminasse na terça. Com sorte, o médico que faz a leitura dos resultados e dá o laudo o veria naquele mesmo dia e tudo chegaria na mão do médico cardiologista na quarta de manhã.

Queiroz, o diretor do hospital, afirmou que nenhum paciente fica internado apenas para aguardar o resultado desses exames, mas reconhece que o hospital precisa adotar medidas, que já iniciou, para otimizar o trabalho e diminuir o tempo de internação dos pacientes, por isso alguns procedimentos na ala de cardiologia serão revisados.

A burocracia desses processos, de fato, acaba mantendo pacientes internados além do tempo necessário, apesar da existência da fila para a internação que leva pessoas em estado grave a esperarem no corredor por mais de uma noite. A espera por exames entre os internados é algo comum. Um deles esperava havia nove dias para realizar um cateterismo. A máquina que faz o exame estava quebrada. Depois dos nove dias, ele recebeu alta e teria que voltar em outro dia, quando a máquina estivesse funcionando.

Para tentar melhorar a situação, os próprios pacientes têm a receita: “só consegue agilizar o atendimento quem tem familiar que vai atrás por conta própria”. Provo que o conselho faz sentido: resolvo ir até o tal ambulatório onde os exames são realizados. Lá descubro que às 12h da sexta-feira (quatro horas depois do pedido médico), ninguém havia recebido a guia necessária para agendar o exame. Volto ao andar da internação, cobro o enfermeiro que me diz que o pedido havia acabado de ser encaminhado. Volto ao ambulatório e insisto para que ao menos o Holter fosse iniciado naquela sexta-feira. A enfermeira, complacente, promete tentar, mas acha difícil que o exame aconteça antes de segunda. “No máximo consigo para o sábado”, disse. Foi o que aconteceu.

Com o tempo ganho com a antecipação do exame, que revela, afinal, que o caso não é grave, a paciente que acompanho tem alta na terça-feira de manhã. Uma internação de quase cinco dias completos para a realização de três exames. Algo rápido para os padrões do hospital. Questionado, o Iamspe não informou o valor de um dia de internação na cardiologia. Disse ainda que no mês que vem entregará uma nova unidade de Pronto Socorro, que custou 147 milhões de reais, e que as obras têm influenciado o atendimento.

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