_
_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

A fé da Marina

A política num regime democrático não deve ser contaminada pela religião

Juan Arias

Tem importância política o fato de que Marina Silva seja crente? Encontrei amigos que me disseram: “Eu votaria nela se não fosse evangélica”. As urnas têm opção religiosa?

A fé em alguma crença é algo pessoal e íntimo que não tem porque influenciar na política. Se Marina fosse agnóstica ou ateia deixaria de poder ser uma boa governante por isso?

O Brasil é um país laico, com separação entre a Igreja e o Estado, no qual existe liberdade religiosa. Cada um pode acreditar ou não acreditar em algo. A política num regime democrático não deve ser contaminada pela religião.

Marina foi alfabetizada aos 16 anos por religiosas e professou a fé católica. Militou nos movimentos que se inspiravam na Teologia da Libertação quando seguia o extrativista coletor de borracha Chico Mendes. Foram essas mesmas comunidades de base progressista, e os católicos em geral, que levaram, por exemplo, Lula à Presidência da República, segundo ele mesmo confirmou numa entrevista a este jornal.

A morte violenta do líder ambientalista Chico Mendes por defender os trabalhadores rurais influenciou a consciência social e ecológica da jovem Marina. Mais tarde, abatida por uma séria doença que a levou às portas da morte, entrou na Igreja Evangélica.

É uma pessoa de fé, mas de quem não se conhecem gestos de fanatismo. Em alguns temas delicados de liberdade de consciência, como a união entre homossexuais, é mais aberta inclusive do que muitos católicos.

Entrevistei Marina duas vezes. A primeira apenas uns dias depois de ela ter sido nomeada ministra do Meio Ambiente, no primeiro governo de Lula. Vivia num apartamento simples de classe média em Brasília. Conversamos sobre os erros da política. Por que tanta gente tem um conceito tão negativo dos políticos e dos governantes?

Marina, que é uma leitora da Bíblia (será isso um pecado?), me lembrou da passagem do Gênesis, 21,33, na qual se conta que Abraão, considerado o patriarca dos crentes, já ancião, plantou uma árvore, um tamarineiro. Comentou que alguém poderia considerar inútil aquele gesto do patriarca já que, dada sua avançada idade, ele não veria a árvore crescida.

Não entendi naquele momento o que tinha a ver aquela passagem bíblica com os políticos pouco amados pelas pessoas. Ela me explicou que Abraão quando plantou o tamarineiro sabia que não seria para ele. Ele o fez pensando na próxima geração. Era um gesto de altruísmo. Os políticos, ao contrário, segundo Marina, fazem quase tudo em função do imediato, para tirar proveito pessoal, sem pensar num projeto de país ou de cidade para os que virão depois dele 20 anos mais tarde. Tudo isso porque, em geral, os políticos, segundo ela, pensam mais na sua reeleição do que nos programas de longo prazo que não lhes servirão para isso, como os de defesa do meio ambiente.

Uma análise assim da bíblia na boca de uma política experiente como Marina pode ser vista como fanatismo religioso? Há quem tema também que, sendo evangélica, sua Igreja nunca lhe permitira, por exemplo, legislar a favor da liberdade de aborto. Esquecem-se que Dilma, por exemplo, para poder se eleger, teve que aceitar o compromisso diante das diversas confissões religiosas, começando pelos católicos, de não abordar durante sua presidência o tema da interrupção voluntária da gravidez. Aceitou o compromisso e o cumpriu e as mulheres brasileiras continuam sem poder decidir sobre seu próprio corpo.

Marina poderá não ser votada, e com razão, por tantos outros motivos que devem existir entre os eleitores. Não estou fazendo campanha para ela. Eu, como espanhol, nem sequer voto no Brasil. Os motivos, entretanto, deveriam ser políticos, não religiosos. Da mesma forma que seria racismo não votar nela por ser negra, seria igualmente ofensivo e racista não fazê-lo pelo fato de ser uma mulher com fé religiosa, sobretudo porque em seus longos anos de militância política, Marina nunca colocou a fé à frente das suas obrigações profissionais.

Muitos outros candidatos políticos inclusive agnósticos não só não desprezaram nunca, que eu saiba, os votos dos evangélicos, como os aceitaram de forma às vezes até descarada. Isso significa que esses votos são tão dignos e democráticos como os dos católicos, judeus e ateus ou só Marina não seria merecedora deles.

Quem não deveria votar nela são todos aqueles insensíveis aos problemas de defesa do Planeta, aqueles aos quais não lhes importa que continuemos destruindo a Terra porque nisso Marina é muito mais beligerante do que na sua fé religiosa.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_