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A QUARTA PÁGINA
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Histórias de Terra Quente

Neutralizar o cartel dos Templários, contra o qual lutam as milícias, requer uma coordenação inédita das forças federais, mas Michoacán precisa de uma reforma profunda que ninguém sabe como empreender

Enrique Krauze
RAQUEL MARÍN

As guerras e revoluções do México foram explosões do subsolo social, de enorme força destrutiva (e libertadora) que levaram muito tempo para serem aplacadas. Depois delas vieram longos períodos de paz interna e desenvolvimento econômico. Onde estamos agora? Se as reformas econômicas aprovadas em 2013 atraírem investimentos e forem executadas com eficiência e honestidade (um grande se), o maior obstáculo será a falta de paz interna. A força do crime organizado e a fragilidade das instituições e das leis em matéria penal mantêm algumas regiões do México em estado de erupção.

A partir do ano de 2000, em que houve uma transição democrática, este país tem vivido um novo ciclo de violência, não mais ideológica nem social, mas criminal. As cenas que ainda circulam em redes sociais são de uma crueldade indescritível.

Embora os cartéis do narcotráfico e do crime organizado (aliados a altos dirigentes políticos) viessem crescendo desde os anos 1970, ninguém previu a paradoxal razão de seu florescimento: ao limitar o poder quase ditatorial do presidente, a democracia –um bem em si mesma, claro– teve um efeito centrífugo de favorecer a autonomia dos poderes criminais ligados aos políticos locais e aos policiais corruptos. Começou a guerra civil entre os cartéis e a guerra entre eles e o Estado. O presidente Fox (2000-2006) pecou por omissão: praticou uma política de avestruz; o presidente Calderón (2006-2012) pecou por ação: optou por uma guerra frontal, apagou o fogo com gasolina. A espantosa cifra de mortos ultrapassa 80.000.

A região, por seu clima tórrido e a violência de seu povo, é a sucursal mexicana do inferno

Pouco a pouco, em um processo de regeneração política, policial e social apenas embrionário, o Estado voltou a recuperar espaços. Alguns dos grupos mais sanguinários, como os Zetas, que operavam nos Estados do Golfo do México, foram sendo minados e mudaram sua base de operações para a América Central. Algumas cidades-chave da fronteira (Tijuana, Ciudad Juárez, Monterrey) começaram precariamente a restabelecer um pouco da ordem. Mas o enfraquecimento de alguns cartéis (Cartel do Golfo, Tijuana) e a morte ou captura de vários capos fez com que proliferassem grupos armados que atuam por conta própria, não mais no complexo negócio das drogas, mas naquele mais exequível da extorsão e do sequestro.

A atual erupção ocorre no belíssimo Estado de Michoacán (indígena, colonial, lacustre, montanhoso e... vulcânico) na parte oeste do México, que foi cenário central de todas as guerras mexicanas do século XIX e XX: a independência, a Reforma. A Intervenção Francesa, a Revolução e a Guerra Cristera. Nenhum criminoso da era revolucionária se comparava ao michoacano Inés Chávez García, cujas hordas saquearam e incendiaram povoados inteiros. Há anos, em conluio com autoridades policiais e policialescas locais e estaduais, começou a operar um grupo criminoso denominado A Família michoacana, cuja suposto objetivo –inscrito em seu nome– era ajudar as pessoas a melhorarem de vida e expulsar os Zetas de Michoacán. No processo, adquiriu um imenso poder e permeou camadas inteiras da sociedade. Um de seus ramos de negócio era a produção de sintéticos em laboratórios secretos da escabrosa serra. Tempos depois, por uma misteriosa metamorfose, A Família (ou um setor dela) se transformou em Os Cavaleiros Templários. Esse grupo pratica a extorsão sistemática em uma escala sem precedentes. Sob o risco de perder os bens ou a vida, nada nem ninguém escapa: casas, farmácias, consultórios, repartições públicas, indústrias, armazéns, lojas, escolas, postos de gasolina, produtores de limão e abacate, tortillerías... Michoacán é um Estado sequestrado.

Fartos dessa situação, em fevereiro de 2013 surgiram grupos armados de autodefesa, compostos por donos de ranchos ou pequenos empresários, alguns deles antigos imigrantes nos Estados Unidos. Não são os primeiros em Michoacán que decidem fazer justiça com as próprias mãos: há três anos os indígenas de comunidades do povo de Cherán desconsideraram as autoridades civis e decidiram colocar trincheiras e guardas armados nas entradas de seus povoados para evitar as incursões dos madeireiros que dizimaram os bosques, patrimônio milenar dessa comunidade.

A população apoia os vigilantes porque vê neles um movimento genuíno de liberação

O epicentro da ação de enfrentamento dos Templários com as autodefesas é a zona chamada de Terra Quente, que desde tempos coloniais – por seu isolamento, seus clima tórrido, sua fauna e flora agreste e índole violenta de seu povo – tem sido a sucursal mexicana do inferno. Fray Diego Basalenque, cronista de Michoacán na primeira metade do século XVII, a descreveu assim: “Para quem não nasceu ali, inabitável, e para os nativos, intolerável”. Quando, em 1785, Miguel Hidalgo (o libertador do México) pediu ao bispo alguma paróquia vaga, prudentemente apontou como exceção em sua petição a Terra Quente. Ao longo do tempo, a região viu se frustrarem vários experimentos de desenvolvimento: agrícolas, de mineração e industriais. Um imigrante italiano, Dante Cusi, fundou aí nos princípios do século XX as prósperas fazendas arrozeiras da Lombardia e Nova Itália.. O general Lázaro Cardenas as expropriou para testar nelas, sem êxito, um ejido (campo comunitário), uma espécie de Kolkhoz mexicano. No final das contas, a propriedade se pulverizou e a região foi povoada por empresas norte-americanas produtoras de melão, que arrendam terras de moradores da área. As pessoas continuaram sendo ingovernáveis, Não é por acaso que Terra Quente seja o santuário dos Cavaleiros Templários.

Recentemente, as forças federais (polícia, Exército) ocuparam esse território. Depois de desalojar a corrupta polícia municipal, estabeleceram uma certa convivência com as milícias. Embora haja versões de que algumas das chamadas autodefesas tenham o apoio do cartel rival dos Templários (Nova geração, Jalisco), o Governo de Peña Nieto parece decidido a propiciar a incorporação dessas forças de vigilantes à esfera legal (até com uma nova denominação), como fizeram dois grandes presidentes do México, Benito Juárez e Porfirio Díaz, que criaram e desenvolveram, respectivamente, a corporação dos Rurais, que pacificou o país nas últimas décadas do século XIX.

Essa integração não será fácil e pode se tornar contraproducente se os grupos de autodefesa –tendo triunfado– imitarem os paramilitares colombianos. Mas esse não é um desenlace inevitável: os vigilantes têm o apoio da maioria da população e de respeitados sacerdotes, que reconhecem neles um movimento genuíno de liberação. Somente o tempo dirá se a arriscada proposta foi criteriosa.

A neutralização definitiva dos Templários vai requerer um trabalho inédito de coordenação e inteligência entre as diversas dependências oficiais, trabalho que necessariamente levará tempo. E será preciso “refazer o tecido social” (eufemismo sobre a necessária atenção a uma região desprezada). Peña Nieto prometeu um investimento econômico sem precedentes no Estado. Sua intenção é transformar Michoacán em um teste de reconstrução aplicável a outras zonas devastadas: Tamaulipas, Guerrero.

A iniciativa é importante, mas deixa à margem a reforma fundamental, a do Estado de direito. Ninguém sabe será abordada. (Gabriel ZAid, o respeitado ensaísta, sugeriu começar pela modernização das prisões). Enquanto ocorre, a vida em algumas regiões do México recorda uma descrição feita por Hobbes: “solitária, pobre, desagradável, bruta e breve”. Mas agora não podemos mais recorrer ao Leviatã do passado, o sistema do PRI, que controlava o crime por meio de sua própria estrutura de corrupção e poder. Agora precisamos respaldar uma ordem democrática que faça as leis serem cumpridas (sobretudo no âmbito penal) e recupere o monopólio da violência legítima nos territórios convulsionados.

Michoacán pode se tornar um bom começo e 2014, um ano promissor: foi em Apatzingán, capital de Terra Quente, onde José María Morelos, o outro caudilho da independência, inspirado na de Cádiz, promulgou em 1814 a primeira Constituição do México. E Apatzingán é, desde 8 de fevereiro, terra livre de templários.

Enrique Krauze é escritor e diretor das revista Letras Livres.

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