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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Participação e legitimidade no Chile de Bachelet

“Neste tempo o Chile olhou para si mesmo, olhou de frente a sua trajetória, seu passado recente, suas feridas, seus feitos e suas tarefas pendentes, e este Chile decidiu que é o momento de iniciar transformações de fundo.” Michelle Bachelet, após vencer as eleições chilenas, 15/12/2013.

Há alguns anos o Chile reformou seu sistema de registro e instituiu o mecanismo de voto voluntário para todas as eleições diretas. A reforma pretendia dinamizar a democracia em um país onde as instituições têm sido objeto de múltiplas críticas por parte dos cidadãos. No domingo passado, teve lugar o segundo turno da primeira eleição presidencial disputada sob essa nova modalidade. Os resultados estão à vista: a abstenção se multiplicou a tal ponto que a candidata eleita, a socialista Michelle Bachelet, será a presidente em exercício com o menor respaldo popular em todo o continente americano.

Os presidentes da região são eleitos, em média, com 40 por cento dos votos da população adulta. É o caso de Ollanta Humala, Cristina Kirchner e Rafael Correa. Candidatos popularíssimos, como foram Dilma Rouseff e José Mujica, estiveram mais perto dos 50 por cento. Outros igualmente conhecidos, mas provenientes de países com participação historicamente baixa, como Barack Obama e Juan Manuel Santos, foram eleitos com apenas 30 por cento. Os recentes 26% de Michelle Bachelet no Chile – ou seja, 62% dos votos em um total de 42% de participação – são, portanto, uma novidade continental. Não é mera modernidade, é uma esquisitice.

Esta magra cifra desencadeou no Chile um debate a respeito dos efeitos da abstenção sobre a legitimidade democrática. Para alguns, esta é assegurada pelo mero cumprimento das regras do jogo democrático. É apropriado afirmar que a legitimidade não é uma questão de participação, mas sim de regras?

Não, não é, a não ser que confundamos legitimidade com legalidade. Segundo a clássica definição de Lipset, a legitimidade democrática é “a capacidade do sistema político de engendrar e manter a crença de que as instituições políticas existentes são as mais apropriadas para a sociedade”. Ou seja, não se trata de cumprir as regras, e sim de preferir tais regras. A legitimidade é mensurável de maneira direta – por meio de perguntas em pesquisa sobre a avaliação da nossa democracia, do sistema partidário e das nossas instituições –, mas, além disso, incide e é influenciada pelos modos de participação política.

Durante os últimos anos, o Chile experimentou um duplo processo no qual a participação política institucional – eleições, filiação a partidos políticos –diminuiu, enquanto a participação não institucional – das redes sociais aos protestos nas ruas – apresentou um aumento constante. Esses dois movimentos simultâneos sugerem que o país sul-americano não enfrenta simplesmente um processo de despolitização ou apatia política, e sim que uma fração importante dos seus cidadãos prefere canalizar sua participação por vias não institucionais. De fato, o movimento social chileno foi explícito em sua crítica às instituições, qualificando o sistema político de “pouco representativo” e convocando-o a “mudar as regras do jogo”.

Neste contexto, os 26% do Bachelet dizem algo, ou melhor, confirmam algo, a respeito da legitimidade da democracia chilena. A recente abstenção é consistente com uma série de outras medições que demonstram uma visão muito negativa dos cidadãos chilenos a respeito das suas instituições – cifras que apontam de maneira objetiva, todas elas, para uma crise de legitimidade política.

Mas, então, será pouco legítimo o futuro governo de Bachelet, dada a baixa adesão a ele no total da população?

De maneira nenhuma: a legitimidade democrática se refere ao apoio dos cidadãos ao sistema político, e não às preferências específicas em relação a uma determinada administração. De fato, o atual presidente, Sebastián Piñera, foi eleito com menos de 30 por cento dos votos dos chilenos adultos, o que já era anormalmente baixo no âmbito internacional. Mais ainda, Piñera obteve menos votos do que Aylwin, o primeiro presidente eleito depois da ditadura, no começo da década de 1990, embora a população em idade de votar tivesse aumentado em mais de 4 milhões de cidadãos nesse período.

A crítica à eleição de Bachelet em termos de abstenção acarreta uma crítica a todos os que têm sido eleitos no Chile na última década. Tal generalização é exagerada, salvo se considerarmos a falta de legitimidade como sendo algo mais geral e de longo prazo, relacionado mais às regras do que com os atores políticos.

E é nessa dimensão que se deve avaliar a importância do triunfo de Bachelet no Chile. A singular abstenção eleitoral dos chilenos está associada a uma falta de legitimidade de seu sistema de representação, mas isso só reafirma a urgência de consolidar o momento constitucional que o país vive e impulsionar uma substancial reforma que modernize suas instituições. Essa reforma é, de fato, a coluna vertebral do programa de Michelle Bachelet, que se comprometeu a modificar a Constituição autoritária imposta pela ditadura de Pinochet, a qual rege o país desde então.

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