Joel e Ethan Coen: “Talvez façamos um filme sobre o Tea Party”
Periodicamente nos chega uma nova porrada dos irmãos Coen, testemunhas de um país amplo em contradições – prato cheio para o percurso pessoal e surreal da ficção de Joel e Ethan, duas referências do cinema universal moderno Irônicos e ameaçadores diante da provocação de retratar no futuro o cavernoso Tea Party, eles apresentam, por intermédio de um cantor fracassado, sua visão peculiar dos anos 60 em “Inside Llewyn Davis – Balada de Um Homem Comum”, seu novo filme
Desde Gosto de Sangue, de 1984, até Inside Llewyn Davis – Balada de Um Homem Comum, que estreia em fevereiro no Brasil, os irmãos Joel e Ethan Coen acumulam três décadas fazendo mais ou menos o cinema que têm vontade. Possivelmente nenhum outro diretor e roteirista americano (embora obviamente sejam dois, acaba sendo inevitável falar no singular quando se trata de descrever seu trabalho, porque são inseparáveis) conseguiu se conciliar de forma tão contundente com o sucesso de público sem perder uma certa aura de independência e radicalismo criador. Há algo que torna seus filmes reconhecíveis a partir das primeiras sequências: o humor negro, os planos insólitos, os diálogos surrealistas, os personagens excêntricos. Essa unidade na diversidade é um dos muitos fatores que relacionam os irmãos Coen aos grandes artesãos da Hollywood clássica, embora eles tenham sempre se movimentado fora dos grandes estúdios. Joel (1954), mais alto e mais tímido, e Ethan (1957), mais divertido, nasceram em um subúrbio do Minneapolis (Minnesota). Seus pais eram professores universitários: a mãe, historiadora da arte, e o pai, economista. Começaram suas carreiras cinematográficas em Nova York, onde ainda residem. Fizeram 16 filmes juntos. As estritas normas do Oscar (eles têm alguns no seu escritório) impedem, em princípio, que duas pessoas compartilhem o prêmio por um trabalho, a menos que fique claro que são um “dueto estabelecido”. Mais do que estabelecido, no caso dos Coen, que parecem um Cérbero cujas duas cabeças em vez de latir se dedicam a soltar risadas e ironias. Conversar com os Coen produz um efeito estranho: é falar com duas pessoas de uma vez como se fossem uma. Entende-se perfeitamente por que quem trabalha com eles diz nunca receber ordens contraditórias.
Irmãos Coen
Em meados dos anos cinquenta, entre 1954 e 1957, em Minnesota, nasceram Joel e Ethan Coen, no seio de uma família judia. Graças às horas que passavam em frente à televisão e a uma – supõe-se – infância propensa a estarem rodeados por livros e idas ao cinema com seus pais, em plena carreira universitária, os irmãos foram forjando um espírito criativo que os levaria a serem, de forma bicéfala, dois dos criadores fundamentais do mundo, genuína e cruelmente norte-americanos. Com quatro Oscars nas costas, embora Joel assine habitualmente como diretor e Ethan como produtor, nunca fica claro com qual parcela de brilhantismo cada um contribuiu em obras-primas como Ajuste Final, Barton Fink – Delírios de Hollywood, Fargo, O Grande Lebowski e Bravura Indômita.
Inside Llewyn Davis relata a história de um músico fracassado, numa gélida Nova York do começo dos anos sessenta, que passa o filme inteiro sem um casaco e mendigando lugares onde dormir. É uma espécie de Odisseia – obra pela qual são obcecados, e da qual já fizeram uma livre adaptação em E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? –, que agora leva o protagonista a realizar intermináveis viagens de metrô (com um gato) e inclusive o conduz a Chicago (com o imenso John Goodman e também com o gato).
Pergunta. Por que se interessam tanto pela Odisseia?
Ethan. É verdade que pensamos esse filme como uma odisseia em que o personagem principal de fato não vai a lugar algum.
Joel. Alguém disse que na verdade só se podem contar três histórias. Uma é a Odisseia, a outra é a do rapaz que conhece uma garota, e não me lembro qual é a terceira [risos]. Nós, que fazemos filmes, na verdade sempre queremos fazer um remake de O Mágico de Oz, que é acima de tudo uma viagem, uma odisseia.
P. Se juntarmos seus 16 filmes, embora não na ordem de realização, encontraremos um afresco bastante completo da história dos Estados Unidos, do Velho Oeste até os desastres da CIA?
Joel. Não sei, o fato é que muitas vezes nos perguntaram por que não fazemos um filme na Toscana ou em algum lugar assim. O problema é que somos americanos, e nos saem histórias americanas.
Ethan. Eles estão geograficamente bastante distribuídos, só que por diferentes pontos dos Estados Unidos.
P. E por diferentes momentos da história norte-americana, a Grande Depressão, o Velho Oeste, a Lei Seca…
Joel. Sim, nós gostamos de fazer filmes de época.
Ethan. A Grande Depressão, os anos sessenta, os anos quarenta. Inclusive fizemos um filme dos anos oitenta. Dois dos anos cinquenta. E outro dos sessenta.
P. Por que escolheram “os anos sessenta antes dos sessenta” para ambientar seu novo filme, Inside Llewyn Davis?
Ethan. Os anos sessenta antes dos sessenta? É exatamente isso. Porque os anos sessenta-sessenta podem ser muito costumbristas. Quem quer se ocupar dos hippies, com suas bandanas no cabelo, bigodões, cabelos compridos, jaquetas de índio com franjas? Os anos sessenta foram um pouco exagerados…
Joel. Um pouco repelentes.
Ethan. Sem dúvida, muito repelentes. Com todo respeito, você não quer fazer The Doors.
Joel. Sem dúvida [risos].
Ethan. O que de verdade queríamos fazer era uma sequência de Barton Fink – Delírios de Hollywood.
Joel. É verdade.
Ethan. Os anos sessenta em plenos sessenta, um filme que transcorre no ano de 1967 em San Francisco.
Joel. Cheio de bigodões.
Ethan. Combinamos com John Turturro que faríamos uma sequência de Barton Fink quando o personagem fosse velho, o chamaríamos de Old Fink, mas só quando for suficientemente velho para fazê-lo sem maquiagem, porque ele não quer sessões de duas horas cada manhã. Para Inside Llewyn Davis, queríamos nos centrar nos anos sessenta antes dos sessenta, porque além do mais nos interessa a música. É um momento muito interessante, antes da aparição de Bob Dylan e da revolução que ele significou. O revival do folk no começo da década ainda era um movimento muito pequeno.
Há uma frase que acredito que resume muito bem esse momento, quando perguntam ao personagem do soldado se ele havia conhecido Elvis na Alemanha, e ele responde: “Não cruzei com o soldado Presley”. Parece quase incrível que alguém se refira a Elvis como “soldado Presley”.
Ethan. Quando Elvis foi para o Exército pareceu realmente incrível.
Joel. Foi demais [risos].
Ethan. Há um Elvis antes do Exército e outro Elvis depois do Exército.
Joel. Na atualidade jamais aconteceria.
Ethan. Uma grande estrela no Exército, com todas as revistas cobrindo-o, com a filmagem do seu corte de cabelo… São outros tempos.
P. Vocês se divertiram muito recriando os Estados Unidos desses anos? Suas imagens têm a textura de grandes fotógrafos, como Robert Frank ou Ansel Adams.
Joel. É bastante divertido. Uma das grandes coisas de fazer filmes é a possibilidade de criar um universo paralelo, dedicar-se a isso durante meses. Você trabalha com especialistas, na direção de arte, que se ocupam dos pequenos detalhes.
Ethan. Em que ano Robert Frank publicou Os Americanos?
Joel. Nos anos cinquenta. São fotografias maravilhosas. Robert Frank estava muito imerso na vida cultural de sua época, era amigo de todos esses pintores e músicos do seu tempo. Embora tivesse nascido na Europa, não sei se era húngaro.
Ethan. É muito divertido recriar tudo isso. Nós nos inspiramos muito na capa do disco Freewheelin, do Bob Dylan. Assim era Nova York naquela época. E depois, quando o protagonista cai na estrada, entra em jogo a estética do Robert Frank.
P. Em uma entrevista, vocês asseguraram que haviam se inspirado muito na biografia de Dave van Ronk, um cantor folk nova-iorquino, mas também nas memórias de Bob Dylan. Por que não quiseram se amparar em um personagem real?
Ethan. Lemos muito sobre esse período, os dois cantores que você citou, claro. Tomamos emprestadas coisas de muitos lugares diferentes, embora sobretudo do livro autobiográfico de Dave van Ronk, The Mayor of MacDougal Street. Mas o protagonista não é ele, é um personagem inventado.
P. Não tinham medo de fazer um filme cujo protagonista é um completo imbecil, não temem que muitos espectadores o rejeitem?
Joel. Sim, era um desafio interessante para nós na hora de propor o filme…
Ethan. Bom, não é um completo imbecil, mas é um imbecil, sim [risos].
P. É bem imbecil, se me permitem.
Ethan. Sem dúvida, mas qualquer um de nós já cruzou na vida com imbecis maiores.
Joel. Tudo é difícil: o protagonista é difícil consigo mesmo e com os outros.
Ethan. Mas isso é também o que o torna interessante: em que medida seu caráter contribui com seu insucesso, ou seu insucesso o vai transformando em um imbecil? Todos conhecemos imbecis que tiveram sucesso.
Joel. Em certa medida, nos interessava fazer um filme sobre um personagem que em muitos aspectos é o pior inimigo de si mesmo. Acho que o fato de ser um sujeito difícil o torna mais interessante.
Ethan. Quanto ao público, tenho certeza de que não nos perdoaria é se tivéssemos feito um filme sobre um sujeito tão imbecil e que ainda por cima tivesse sucesso.
P. Dada a afeição que vocês têm nos seus filmes por esse tipo de personagem, já tiveram a tentação de fazer um filme sobre o Tea Party? Ele está cheio de personagens que parecem saídos da imaginação de vocês.
Joel. Talvez o façamos em alguns anos.
Ethan. Seria a sequência de Fargo, mas com o Tea Party. O protagonista poderia ser um líder local do Tea Party.
Joel. E vai ao Congresso, propõe fechar o Governo e se nega a autorizar o aumento do teto da dívida.
P. Vocês fizeram muita pesquisa musical para realizar seu novo filme, ou realmente ele está apoiado nas canções que recordavam da sua juventude?
Joel. Tínhamos muito claro o tipo de música que queríamos que aparecesse, inclusive as canções, mas quando T-Bone Burnett se somou ao projeto ele nos ajudou a escolher o resto da trilha, e foi ele quem trabalhou diretamente com os músicos e os atores nos arranjos das canções e na forma de interpretá-los. Na verdade, ele se envolveu muito rapidamente, assim que terminamos o roteiro, e em seguida todo o projeto deu um salto no terreno musical.
P. O personagem que aparece ao final cantando uma canção, com um perfil claramente reconhecível, dá a impressão de ser Bob Dylan. Com ele mudou tudo na música americana?
Joel. Supõe-se que seja Dylan, de fato toca uma canção sua.
Ethan. Sim, é um personagem no qual o nosso protagonista nunca irá se transformar. Depois dele, nada voltará a ser o mesmo na música.
P. Em sua longa odisseia de fracasso em fracasso, há um momento em que o famoso produtor interpretado por F. Murray Abraham diz a Llewyn Davis: “Você não vai ganhar muito dinheiro com essa música”. Não lhe recrimina por ser ruim, mas por ser pouco comercial. Veem que seja de certa forma essa a escolha de vocês como criadores?
Joel. Sim, é assim. Nosso protagonista confronta alguém que pode ajudá-lo, que pode transformá-lo em alguém bem-sucedido; o produtor, que faz algo pelo artista, mas também por si mesmo, representa algo bom e algo mau. Lowell, quando o confronta, por um lado lhe mostra o melhor de si mesmo, mas também com uma estratégia que com toda certeza vai ser derrotada. Queríamos que estivesse num meio-termo: não é que seja rejeitado totalmente por esse sujeito, ele não é especialmente simpático, mas o escuta e inclusive lhe dá uma oportunidade, que Llewyn prefere não aceitar. São assuntos que nos parecem interessantes: é verdade que se trata de um criador que prefere ignorar a parte comercial daquilo que faz, mas sempre há uma parte comercial.
P. Vocês não gostam de serem chamados de cineastas independentes. Por que rejeitam esse rótulo?
Ethan. Fizemos 16 filmes, que são mais ou menos os que queríamos fazer, não podemos jogar em ninguém mais a culpa pelo resultado. É difícil saber o que quer dizer “independente”, é um termo que causa admiração a muita gente, mas não entendo muito bem por que [risos].
Joel. Para mim, representa uma denominação muito artificial. É muito difícil distinguir entre o chamado cinema independente, que nós em teoria fazemos, e o cinema que se realiza em alguns estúdios. São tão independentes quanto nós, manejam os mesmos registros, embora seus filmes sejam financiados e distribuídos por grandes estúdios. O cinema independente é o que se faz sozinho, fora dos grandes estúdios? Há cineastas fora dos grandes estúdios, mas submetidos à supervisão de seus departamentos financeiros, que têm pouca margem criativa. É muito difícil saber o que se entende por cinema independente.
P. Depois de todo o ocorrido com as revelações de Edward Snowden e de que um analista subcontratado tenha podido se apropriar e difundir uma quantidade gigantesca de informação, o que colocou em apuros os serviços secretos norte-americanos, seu filme sobre a CIA, Queime Depois de Ler, não parece tão surrealista, é mais uma descrição do que uma paródia.
Ethan. Nós não fazemos paródias. Queríamos rodar um filme como Queime Depois de Ler porque era a última coisa que alguém acreditaria que fôssemos fazer. Então pensamos: “Vamos nessa”. É um filme que começa na sede da CIA, em Langley, na Virgínia, e com um sujeito que caminha sobre o selo gigante da CIA. É um alcoólatra demitido na primeira cena. E isso é só o começo.
P. Na Espanha, fala-se muito em crise do cinema, na sensação de que é um negócio em extinção. E algo um pouco parecido ocorre com as livrarias. Vocês compartilham desse sentimento, dessa concepção apocalíptica?
Ethan. Suponho que sim.
Joel. Compartilho de algumas coisas, mas não todas.
Ethan. É algo que volta de forma recorrente. Nos anos sessenta se falava da morte do romance. Passamos pela morte da Broadway, do teatro, e agora é a morte dos filmes e livros.
Joel. Os romances não morreram, mas agora as pessoas os leem em kindles.
Ethan. Nos anos sessenta também se falava da morte de Deus.
Joel. Sim, isso foi bem no começo. Precisava ter acabado aí, porque depois vieram a morte da novela e dos filmes [risos].
Ethan. A morte dos livros como objetos não é o fim do mundo. O lógico seria que a próxima coisa a morrer fossem as conversas apocalípticas sobre coisas que morrem.
P. Mas vão vocês a rodar o seu próximo filme em digital?
Ethan. Será que o celuloide morreu? Bom, isso eu receio que sim.
Joel. Outro dia eu falava de filmes digitais com um amigo, e ele me disse que a Kodak estava voltando a produzir películas. Quem, diabos, sabe o que vai acontecer?
Ethan. Ainda não sabemos se rodaremos nosso próximo filme em digital, estamos dando voltas ao assunto, embora há dez anos estejamos de fato montando filmes em digital.
P. Não tiveram receio de ignorar o conselho de Alfred Hitchcock de nunca filmar com crianças e animais? Porque o gato é um personagem essencial em Inside Llewyn Davis.
Ethan. Hitchcock disse isso? Pois sabia do que estava falando.
Joel. Sim, mas, por outro lado, disse que os atores são como gado. É um bom conselho.
Ethan. Sobretudo não filmar com gatos.
Joel. Tínhamos de ter dado ouvidos a ele. Sabia do que falava, afinal de contas rodou uns 55 filmes.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.