_
_
_
_
PEDRA DE TOQUE
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Isaac e Isaías

As coisas que Deutscher e Berlin defendiam e criticavam eram quase sempre incompatíveis, mas eles as exprimiam com solidez intelectual e elegância expositiva. O primeiro foi marxista; o segundo, liberal

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

Em um livro que acaba de ser lançado, Isaac & Isaiah (The Cover Punishment of a Cold War Heretic), David Caute contrasta as vidas, ideias e destinos de Isaac Deutscher e Isaiah Berlin, dois ensaístas que alcançaram grande prestígio nos anos cinquenta e sessenta e tiveram muita influência política no âmbito intelectual na Europa e América do Norte. Pareciam-se em muitas coisas, mas suas ideias representavam dois polos irreconciliáveis: Deutscher o marxismo revolucionário, e Berlin a democracia liberal.

Ambos eram judeus não crentes, da mesma geração, e tinham acabado de fugir dos seus respectivos países, atirados pelo totalitarismo (o soviético no caso de Berlin, nascido na Letônia, e o nazista no de Deutscher, que era polonês), e ambos terminaram exilados em Londres e naturalizados britânicos. A única coincidência ideológica que houve entre eles, e só por alguns anos, foi o apoio ao sionismo, ao qual depois Deutscher atacaria com severidade, descrevendo Israel como um mero peão do imperialismo norte-americano durante a Guerra Fria.

Isaiah Berlin alcançou os mais altos reconhecimentos no âmbito acadêmico – quase toda a sua vida transcorreu em Oxford, e chegou a presidir a Royal Academy e a ser feito nobre pela rainha –, ao passo que Isaac Deutscher, embora tenha proferido seminários e sido professor convidado em importantes universidades, foi sobretudo um jornalista (na mais alta acepção intelectual da palavra) e escritor independente. Sua única tentativa de ser contratado por uma universidade britânica, a de Sussex, se frustrou, segundo afirma David Caute, por culpa de Isaiah Berlin, e daí o subtítulo um tanto enganoso do livro: “o castigo encoberto de um herege da Guerra Fria”. Digo enganoso porque, embora haja indícios de que a opinião hostil de Berlin contra a obra e a posição política de Deutscher tenha influído na decisão da Universidade de Sussex de não contratá-lo, esse assunto está longe de estar claro, e, em todo caso, Berlin sempre negou tal acusação, inclusive em duas cartas explicativas sobre sua intervenção no assunto, à viúva do autor das célebres biografias de Stalin e Trotsky.

Um deles esteve convencido de que o comunismo se reformaria de suas taras

O livro é interessante, seriamente documentado, mas não simpático, pela antipatia que Caute professa por Isaiah Berlin e que surge com frequência, sobretudo quando, de passagem, ele se empenha em salientar suas frivolidades, cultivar a amizade dos poderosos e dos milionários e se mostrar às vezes algo fátuo e soberbo com as pessoas. E também, algo muito mais grave, dando a entender de maneira sub-reptícia que algumas das maiores contribuições de Berlin à cultura da liberdade, como sua teoria sobre a liberdade “negativa” e a “positiva”, sua divisão entre intelectuais “ouriços” e “raposas” e a clara demarcação entre um liberal e um conservador, não foram nem originais nem importantes. A verdade é outra: Berlin é um dos mais importantes pensadores políticos do nosso tempo, e um dos poucos cuja obra elucida com perfeita e sistemática coerência o liberalismo rebaixado e sectário dos que o entendem como uma exclusiva doutrina econômica de defesa do mercado, de quem, como ele mesmo, vê nele uma doutrina na qual a tolerância, a coexistência política, os direitos humanos, o espírito crítico, a cultura e a fiscalização do poder são tão importantes quanto a propriedade privada e a economia de mercado para estimular o progresso social.

Berlin e Deutscher só se viram duas vezes na vida, e nunca polemizaram diretamente, embora, como sustenta Caute, as coisas que defendiam e criticavam fossem quase sempre incompatíveis e, ao mesmo tempo, de uma grande solidez intelectual e uma equivalente elegância expositiva. Com os anos que transcorreram e as coisas que neles ocorreram, hoje sabemos que Isaiah Berlin venceu cabalmente esse debate, como demonstra a desaparição da União Soviética e a conversão da China ao capitalismo autoritário.

No entanto, que todas as profecias e anseios políticos de Deutscher tenham se frustrado não tira o menor valor de boa parte da sua obra, nem priva de méritos a coragem e a honestidade com que defendeu sempre suas ideias. Ele foi um marxista antitotalitário, essa raridade; foi a razão pela qual o Partido Comunista polonês o expulsou das suas fileiras, e pela qual foi sempre a besta negra dos stalinistas da URSS e do Ocidente. Ele nunca negou os terríveis crimes cometidos sob Stálin, e os livros e ensaios que dedicou a ele e a Trotsky os documentam com rigor. Mas sempre esteve convencido de que, apesar de tudo isso, uma hora ou outra o comunismo se reformaria dos seus defeitos, e que, retornando às fontes primigênias do marxismo, estabeleceria sociedades mais justas, mais humanas, mais decentes do que o capitalismo, cujo sucesso exigia a exploração dos mais pelos menos, e era constitutivamente injusto e por isso condenado, cedo ou tarde, a se extinguir. A famosa reforma interna da URSS, que Deutscher tanto esperou, nunca se tornou realidade, e, no final, foi o comunismo que deixou de existir, pelo menos como uma alternativa tangível às democracias liberais.

Mas, na sua condenação ao colonialismo, à corrupção e aos abusos que o poder econômico poderia chegar a cometer nos países capitalistas, na necessidade de não contabilizar o progresso exclusivamente pelo crescimento econômico, de dotar a democracia de um conteúdo criativo e constantemente renovado por um ideal de justiça e solidariedade com os pobres, os discriminados e os marginalizados, as ideias de Deutscher têm vigência duradoura. E é verdade também, como diz Caute, que sua vida foi um modelo de coerência, o que lhe exigiu sacrifícios enormes. Mas também se equivocou muitas vezes, como quando acreditou ver, no movimento contra a Guerra do Vietnã nos Estados Unidos, a gestação de um socialismo que uniria os estudantes e os operários norte-americanos em uma revolução contra o capitalismo.

O outro dedicou mais tempo a entender aos inimigos da liberdade que a suas valedores

Por que Isaiah Berlin sempre professou essa antipatia tão profunda por Deutscher, que o levava às vezes, na sua correspondência, a usar contra ele termos que eram insólitos no seu linguajar, como “repelente” e “desprezível”? Certamente não era pela diferença de ideias que os separava. Berlin dedicou mais tempo a tratar de entender os inimigos da liberdade do que seus protetores, e dedicou ensaios escrupulosamente honestos a Marx, a Comte, a Herder, a Hobbes, a Sorel e a muitos outros dessa corrente, de modo que a razão da antipatia não era ideológica. Nem tampouco pessoal, pois mal se vieram em duas ocasiões. David Caute dá a entender que a razão poderia ser uma resenha negativa que Deutscher publicou contra o ensaio de Berlin acerca da “inevitabilidade histórica”, mas parece um episódio pequeno demais para merecer tanto ódio pessoal.

Não menos surpreendente é o desprezo que Berlin sempre sentiu por Hannah Arendt, uma amante da liberdade não menos comprometida do que ele com a luta contra o comunismo e o fascismo (que ela conheceu na carne, pois foi torturada durante nove dias e nove noites pela Gestapo antes de conseguir fugir da Alemanha), e cuja obra é quase inteira dedicada a estudar as raízes do totalitarismo, suas origens culturais e históricas e as iniquidades que ele causou. Em suas cartas, Berlin fala dela de maneira profundamente despeitosa, negando sua competência filosófica e acusando-a – muito injustamente – de escrever catataus incompreensíveis.

Talvez não haja respostas para essas perguntas. Ou talvez haja, sim, mas sejam pouco satisfatórias por sua generalidade. Os grandes homens – e Isaiah Berlin o foi de fato – são também seres humanos, não super-homens, e por isso mesmo estão sujeitos às pequenezas e misérias que, por exemplo, nos desmoralizam quando reviramos a vida íntima de um Picasso ou de um Victor Hugo, ou de qualquer outra genialidade. Eram grandes quando escreviam, compunham, filosofavam ou pintavam; mas, no demais, estavam feitos do mesmo barro que nós, o resto dos pobres mortais.

© Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas reservados a Edições EL PAÍS, SL, 2013.

© Mario Vargas Llosa, 2013.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_