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CPI da Funai aprova relatório que propõe ‘pacotão ruralista’ de leis

Comissão pede mudanças que tiram autonomia do órgão e mudam a maneira de fazer demarcações Relator pediu ainda o indiciamento de cerca de 100 pessoas, ainda pendente de aprovação

Indígenas em protesto em Brasília no final do mês passado.
Indígenas em protesto em Brasília no final do mês passado.Joédson Alves (EFE)

Iniciada há sete meses por parlamentares ligados à bancada ruralista, entre eles o atual ministro da Justiça, Osmar Serraglio, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para investigar a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) aprovou nesta quarta-feira um pacotão de projetos de lei que pretendem mudar a forma como as demarcações de terras indígenas e quilombolas são feitas no país. As medidas também pretendem substituir a Funai por um órgão com menos autonomia, investigar as finanças de organizações não-governamentais indigenistas e suspender os últimos decretos de reforma agrária assinados por Dilma Rousseff antes de deixar o Governo. O relatório final pediu ainda o indiciamento de cerca de cem pessoas, incluindo antropólogos, por crimes que vão de falsidade ideológica à constituição de milícia, o que ainda está pendente de votação.

A aprovação do texto-base do relatório é mais uma das ofensivas do setor ruralista no Congresso, que tem sido acusado de pressionar o Governo de Michel Temer por mudanças que beneficiem seus interesses. No último 6 de maio, Antonio Fernandes Costa, que presidia a Funai, foi demitido, em meio a um aumento dos conflitos no campo entre agricultores ou fazendeiros e comunidades indígenas, que realizam o que chamam de "retomada" das terras tradicionais, ocupando terras que afirmam ter pertencido a seus antepassados, expulsos décadas antes. Ao sair do cargo, Costa afirmou que "a bancada ruralista assumiu o controle das questões indígenas". Para deputados de oposição, a bancada encontra um terreno fértil para aprovar suas medidas, em um contexto em que o Planalto está desesperado para aprovar reformas impopulares e vê sua base parlamentar enfraquecer diante da pressão popular. "Há uma conjuntura oportuna para eles. Os ruralistas condicionam o apoio às reformas de Temer ao apoio do Planalto a suas propostas", afirma Nilto Tatto (PT), que ao lado de outros deputados apresentou na comissão um voto em separado contrário ao relatório. Na reunião de quarta-feira, a oposição pediu para que se fizessem destaques ao texto-base, que serão ainda votadas numa próxima reunião: eles querem tirar os indiciamentos e o pacotão de leis, mas há poucas chances de que isso seja aprovado.

A oposição acusou a CPI de parcialidade, pois afirmou que crimes cometidos por fazendeiros e agricultores contra indígenas, sem-terras e quilombolas não foram incluídos no relatório. Não há, por exemplo, qualquer menção ao fato de produtores rurais serem acusados pelo Ministério Público Federal de formarem milícias para atacarem indígenas no Mato Grosso do Sul. Segundo o órgão, nos últimos 10 anos um índio foi morto por ano no Estado por conta de conflitos por terra. Os parlamentares dizem que tentarão anular a aprovação do relatório no Plenário da Câmara.

Parte das propostas aprovadas na CPI será encaminhada como projeto de lei a ser votado diretamente no Plenário. Isso pode acontecer assim que as lideranças parlamentares entrarem em acordo. Outra parte delas foi enviada para a avaliação do presidente Michel Temer, com a sugestão de que se tornem projetos de lei do próprio Executivo, o que as fortalece. Neste caso, caberá a Temer decidir se encampa ou não o projeto e o encaminha para a votação na Câmara. Leia mais detalhes destas propostas aqui.

Entre as sugestões que serão feitas ao presidente estão a realização de um projeto de lei que define como regra a tese do "marco temporal". Ela prevê que apenas terras ocupadas pelos indígenas na época da Constituição de 1988 podem ser demarcadas. Há um embate jurídico entre indigenistas e ruralistas sobre a questão: os primeiros afirmam que a legislação prevê que em casos em que os índios foram expulsos da terra e impossibilitados de voltar, a demarcação deve ser feita mesmo que eles não estivessem naquela terra em 1988; os segundos dizem que a Constituição não diz isso e que antropólogos fraudam laudos para dizer que os índios viviam anteriormente no local pretendido. O Supremo Tribunal Federal decidiu em 2009 favoravelmente à tese do "marco temporal" ao julgar o caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, mas disse que a decisão não valeria, necessariamente, para todos os casos. Mas há juízes regionais que têm usado a decisão do STF como precedente e desfeito demarcações já realizadas com base nesta interpretação.

Também deve ser encaminhado para a avaliação de Temer a sugestão de um projeto de lei que tiraria a responsabilidade da demarcação da Funai e se passaria para um grupo técnico designado pelo ministro da Justiça. A tentativa de mudança na forma como as demarcações são feitas já é feita pelos ruralistas no Congresso, com a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que busca fazer com que as demarcações sejam definidas pelo próprio parlamento. Além disso, os deputados pedem para se proibir a ampliação de terra indígena já demarcada, e permitir a exploração de terra indígena para fins comerciais e produtivos, caso os indígenas queiram.

O relatório da comissão, construído pelo deputado Nilson Leitão, mesmo autor da controversa proposta de reforma do trabalho rural, pedia ainda a criação de um órgão que funcionaria como Secretaria Nacional do Índio para desempenhar o que hoje são atribuições da Funai. O argumento era que os cargos principais da instituição passaram a ser exercidos por "onguistas" e que o fato de ser fundação não a vincula hierarquicamente ao Ministério da Justiça, dando autonomia ao órgão. No entanto, ele acabou, no final, pedindo apenas uma reformulação do órgão. Com um Orçamento previsto para este ano de 120,4 milhões, a Funai enfrentou drásticos cortes por falta de verba, o que obrigou a instituição a reduzir o número de funcionários e fechar bases de fiscalização importantes, como áreas que protegem índios isolados.

Indiciamentos

O relatório também pede a investigação de cerca de cem pessoas, que podem ter seus nomes enviados a alguma instância da Justiça (de Ministério Público à Polícia Federal, a depender do caso). Entre eles, 31 indígenas, nove antropólogos, 16 procuradores federais e três advogados da União. Eles estão sendo acusados de crimes como falsidade ideológica, alteração de limites e esbulho possessório (invasão de terreno de terceiros), estelionato, incitação ao crime, constrangimento ilegal, ameaça, associação criminosa e constituição de milícia privada, entre outros. 

Os indiciamentos acabaram sendo destacados do texto final, já que o relator afirmou, nesta quarta, que retiraria alguns desses nomes da lista, entre eles o de pessoas já mortas. A votação deste destaque iria acontecer na mesma sessão de quarta-feira, que já durava quatro horas quando foi interrompida para que os deputados pudessem acompanhar as votações de outras matérias no plenário. Ele pode ser votado ainda na noite desta quarta-feira.

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que divulgou uma nota de repúdio ao relatório, compilou todos os nomes apontados pela CPI da Funai no texto de 3.385 páginas. Dentre os que serão encaminhados para investigação criminal estão nomes das principais entidades indigenistas do país, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Essas duas instituições, assim como outras que trabalham junto aos indígenas, também poderão ter suas contas investigadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para que se avalie os financiamentos que recebem. O CTI já teve seu sigilo bancário quebrado a pedido da CPI e com a concordância do ministro do Supremo, Luiz Fux. A instituições são acusadas pelos parlamentares de financiarem as ações de "retomadas" indígenas, com dinheiro internacional.

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