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A controversa proposta da bancada ruralista para o trabalho no campo no Brasil

Texto prevê jornada de 18 dias e remuneração de "qualquer espécie", entre outros pontos Projeto é de autoria do deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), presidente da bancada ruralista

Trabalhador em campo de soja.
Trabalhador em campo de soja.Ministério da Agricultura
Marina Rossi

Após a aprovação da reforma trabalhista, a Câmara dos Deputados se prepara agora para discutir as mudanças nas leis que regem o trabalho no campo. Um texto, de autoria do deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), presidente da bancada ruralista, foi elaborado para entrar em tramitação na Casa. O Projeto de Lei 6442 é extenso, com mudanças que incluem a possibilidade de jornada de 18 dias seguidos de trabalho sem folga, venda integral das férias, a liberação do trabalho aos domingos e feriados e a retirada do tempo de deslocamento até o trabalho da conta do total de horas trabalhadas, que podem chegar a 12 horas diárias.

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Nilson Leitão defende que a legislação rural vigente é antiga e precisa ser modernizada. "A legislação é de 1973. Naquela época o país era um importador de alimentos", diz. "Hoje o campo é bem diferente".  Mas, para o juiz do Trabalho e mestre em Economia Social do Trabalho, Marcus Menezes Mendes, o texto, da maneira como está, representa riscos para o trabalhador rural. "O projeto é de uma regressão ímpar, pois desconhece aquilo que afirma prestigiar: as peculiaridades do trabalho rural".

De acordo com o juiz, os pontos mais críticos do texto são os que se referem à formação do contrato, remuneração, jornada de trabalho, contrato coletivo de trabalho e regras de saúde e segurança (leia mais abaixo). Segundo ele, alguns artigos presentes no texto abrem, inclusive, brecha para a prática do trabalho análogo à escravidão. "Quem pratica trabalho escravo ganhará um instrumento jurídico para negociar com os trabalhadores", diz. "Esta lei empodera os trabalhistas, e não o trabalhador".

O texto define o empregado rural como uma pessoa física que presta serviço em "propriedade rural ou prédio rústico", "de natureza não eventual", mediante "salário ou remuneração de qualquer espécie". Essa última definição é uma das polêmicas do projeto. O deputado Nilson Leitão admite que esse ponto pode abrir brecha para o pagamento por outros meios, mas garante que o salário é "intocável". "Pode estar abrindo brecha, mas não é essa a minha intenção", disse ao EL PAÍS. "Nunca falei em pagar com comida ou insumo. Estamos apenas regulamentando os benefícios, bônus e prêmios afora o salário". A proposta autoriza desconto de até 20% do salário para moradia e até 25% para alimentação.

O jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto, que é representante na Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo e conselheiro na ONU para o Fundo para Formas Contemporâneas de Escravidão, explica que extinguir o salário é inconstitucional. "Isso não me preocupa porque está assegurado pela Constituição", diz. "O que me preocupa neste texto é a parte relacionada à segurança e saúde do trabalhador". O projeto exclui os ministérios da Saúde e do Trabalho da fixação de regras sobre a manipulação de agrotóxicos, desobriga o trabalhador de ter que descontaminar os equipamentos de segurança no fim da jornada e permite que maiores de 60 anos utilizem defensivos agrícolas. "O trabalho no campo não é a mesma coisa que um trabalho no escritório", diz Sakamoto. "As pessoas não imaginam o risco de insolação e contaminação por agrotóxico no campo, por exemplo".

De acordo com Sakamoto, o projeto permitirá que as inspeções sobre as condições de trabalho no campo se afrouxem. O texto afirma que as vistorias no campo terão caráter "educativo a preventivo" e que as inspeções serão feitas em visitas duplas em todos os casos. Se alguma irregularidade for constatada na primeira visita de um fiscal, por exemplo, o empregador receberá apenas uma notificação. Se a infração não for sanada no prazo estipulado, na segunda visita do fiscal será registrado um auto de infração. "O país deve garantir que nenhum trabalhador atue em condições de risco para a sua saúde e segurança. E o problema é que esse projeto coloca o trabalhador em risco", diz Sakamoto. Mas, para Nilson Leitão, todos devem ter o direito à defesa. "Você é inocente até que se prove o contrário", diz. "É necessário sim uma segunda chance [ao empregador]".

Acordos coletivos

Os principais pontos do Projeto de Lei 6442:

- As leis do trabalho rural sairão do âmbito da CLT

- Permite remuneração de "qualquer espécie", incluindo moradia e alimentação como parte do salário

- Permite o trabalho aos domingos e feriados

- Permite a venda integral das férias ao trabalhador que mora no local de trabalho

- Permite a prorrogação da jornada de trabalho por até 12 horas diárias

- Institui a possibilidade de jornada de até 18 dias de trabalho seguidos

- Autoriza a "segunda chance" para o empregador caso seja detectado alguma irregularidade durante a fiscalização

- Exclui os ministérios da Saúde e do Trabalho da definição e fiscalização de regras sobre o uso de agrotóxicos

- Exclui o deslocamento até o trabalho da conta de horas trabalhadas

- Se uma cláusula de um contrato coletivo for anulada, o contrato inteiro também será. Supondo que um contrato coletivo tem 70 cláusulas e o juiz anula uma delas, todas serão anuladas automaticamente

- Reduz o adicional noturno em uma hora, passando a valer entre as 21h e 4h da manhã

O texto prevê que muitos pontos serão acertados por meio de acordo coletivo ou individual. Nas palavras de Nilson Leitão, "a opção é do trabalhador". Mas Leonardo Sakamoto argumenta que os acordos coletivos ou individuais são delicados, já que se trata de trabalhadores rurais, que, têm menos recursos jurídicos e até informação para negociar com o patrão. "Não dá pra dizer que trabalhadores e empregadores estão no mesmo nível de negociação", diz. Já a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) afirma que a possibilidade de as disposições serem negociadas através de convenções ou acordos coletivos são um "retrocesso".

A proposta também permite que as horas extras sejam substituídas por compensações em folgas, e que o funcionário trabalhe por até 18 dias seguidos antes de ter um dia de descanso. Nilson Leitão diz que isso só ocorrerá "se o trabalhador quiser" e comparou essa jornada ao trabalho de um jornalista que cobre uma guerra. "Eles ficam direto lá", diz. "Isso já acontece em todos os setores." A Frente Parlamentar Agropecuária, o nome oficial da bancada ruralista, também lançou nota para chancelar o projeto e defender a regra dos 18 dias de trabalho: "Não se trata de uma premissa impositiva do empregador, mas sim de um benefício que pode estar amparado pela legislação, e só pode ser exercido desde que seja requerido pelo trabalhador (...). Hoje, no meio urbano, essa hipótese é socialmente aceita, basta ver o caso dos trabalhadores em plataformas petrolíferas, cruzeiros marítimos, dentre outros". Leonardo Sakamoto, que já cobriu três guerras como repórter, explica que a situação não é a mesma. "O jornalista que cobre guerra não é hipossuficiente. Ou seja, ele não faz isso para sobreviver", diz. "Eu aceito ir e não vou pra lá de forma suicida".

"A melhor das intenções"

O presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) aprovou, na semana passada, a criação de uma comissão para analisar o texto das leis do trabalho rural. Mas Nilson Leitão diz que a comissão só será instaurada entre setembro e outubro e que o texto seja votado no plenário só no ano que vem. "Estamos discutindo outras coisas agora", disse. "Eu mesmo não quero que comece a discussão [desta lei] agora".

Por telefone, ele afirmou que escreveu o projeto de lei com "a melhor das intenções" e que o texto ainda pode sofrer alterações. "Projeto é uma lei inacabada. Ela será lapidada ainda por 40 sessões de debates e depois ainda receberá emendas", diz. "Mas eu te juro em nome dos meus filhos que tenho as melhores intenções".

Mas para a Contag, a proposta precarizará as relações de trabalho no meio rural e viola a Constituição. "O projeto de lei tenta inserir o empregado rural na realidade da década de 70", diz a entidade, por meio de nota. "Em diversos pontos o projeto fere de morte normas constitucionais e infranconstitucionais relativas à saúde dos trabalhadores rurais, construindo uma ponte para a precarização das relações de emprego no campo". O juiz do Trabalho Marcus Mendes é taxativo: "Parece ser uma lei de revanche", diz. "Parece que uma certa dimensão do Parlamento decidiu se vingar do trabalho".

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