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Baleia Azul: o misterioso jogo que escancarou o tabu do suicídio juvenil

A morte autoprovocada de jovens tem crescido em todo mundo, mas ainda é pouco discutida No Brasil, onde o desafio irrompeu neste mês, a taxa de jovens que se matam aumentou 26% desde 1980

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Graziela*, de 15 anos, desmaiou no banheiro de sua casa no Rio de Janeiro enquanto desenhava uma baleia no antebraço com uma gilete. Não era a primeira vez que se automutilava. Sentia prazer em fazê-lo e foi por isso que começou a frequentar um psicanalista no começo do ano passado. A menina sofria, havia "coisas" que não conseguia superar, que ficavam "martelando em sua cabeça", e nunca tinha momentos bons, dizia. Dayane, a mãe, a encontrou inconsciente no chão frio e ficou desesperada ao descobrir que a filha participava de um desafio virtual cujo último passo seria tirar a própria vida.

Era assim que, em 7 de abril, o jogo Baleia Azul entrava como um furacão na casa de Dayane, cuja primeira reação foi arrancar o cabo que unia o computador da filha à Internet. A adolescente foi atendida por um médico e voltou para casa. Acordou no dia seguinte disposta a pular todas as etapas restantes do desafio e se jogar da caixa d'água de um prédio. Escreveu duas cartas de despedida, tinha tudo planejado. Mas sua mãe conseguiu impedir a tragédia. A adolescente foi internada num hospital por quatro dias e hoje passa as horas dopada por remédios. Dayane não sabe o que fazer.

Casos como o dessa estudante de classe baixa do Rio começaram a aparecer em vários Estados do Brasil no último mês, convertendo os dramas de saúde dos jovens em casos de polícia, trazendo pânico aos pais e disparando alertas nos hospitais brasileiros, que nos últimos anos já têm presenciado um aumento de casos de suicídios entre adolescentes. Segundo informações ainda não divulgadas do Mapa da Violência, um estudo elaborado com dados do Governo federal pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), entre 1980 e 2014, a taxa de pessoas entre 15 e 29 anos que tiraram a própria vida aumentou 26%.

Em Curitiba, no último dia 17, um posto médico atendeu a quatro casos de adolescentes que tentaram tirar suas vidas numa mesma noite. "Saia da rotina. Todos apresentavam um padrão de automutilação, de ingestão de remédios durante a madrugada. Uma das vítimas tinha uma baleia desenhada no braço", explica o secretario da Saúde da capital paranaense, João Carlos Gonçalves Baracho, que lançou, em seguida, um alerta público para advertir as famílias. Ele afirma, no entanto, que os casos ainda se encontram sob investigação, sem que o elo com o jogo tenha sido demonstrado de forma definitiva. O mesmo acontece em outros Estados, como Minas Gerais, onde três inquéritos foram instaurados para confirmar ou descartar se o Baleia Azul induziu adolescentes a tentar ou a cometer suicídio. 

O misterioso jogo ganhou repercussão no país no início deste mês, quando uma adolescente de 16 anos foi achada morta dentro de uma represa no pequeno município de Vila Rica (Mato Grosso). Ela deixou para trás cartas onde falava sobre as regras do desafio, uma lista de tarefas com cronogramas marcados, e cortes nos braços e nas pernas. Desde então, uma série de informações desencontradas começaram a circular sobre o desafio. Em meio a um mar de boatos, no entanto, uma coisa é certa: a de que o jogo escancarou a necessidade de se discutir um tabu: o do suicídio entre adolescentes, um fenômeno que cresce no mundo inteiro, de acordo com informações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

No Brasil, a situação não é diferente. O Mapa da Violência aponta que a taxa de morte autoprovocada entre jovens é maior do que na população em geral. Em números absolutos, 2.898 pessoas entre 15 e 29 anos tiraram a própria vida em 2014 (últimos dados disponíveis), além dos 146 que o fizeram antes de completar 15 anos. Especialistas apontam ainda que esses números são subestimados, já que jovens que se matam agem mais por impulso e o fazem de forma menos planejada que adultos, que deixam cartas de despedida e às vezes compram até o próprio caixão. Também há pais que, por vergonha ou culpa, preferem esconder o fato. Por isso, muitos casos acabam registrados nas estatísticas como acidentes.

Hipóteses do aumento

"Por causa da série [13 Reasons Why, que aborda o suicídio de uma adolescente] e do jogo muita gente tem prestado atenção no suicídio entre adolescentes. Mas, infelizmente, há anos os dados são alarmantes", afirma a psiquiatria da infância e adolescência Sheila Cavalcante Caetano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "Existem várias hipóteses associadas a isso: aumentou muito a oferta de drogas, que podem provocar transtornos psicológicos, há um estilo de vida em que se dorme cada vez menos, o que tem repercussões químicas no cérebro, como o estresse e a depressão. As famílias também estão menores e os jovens passam muito mais tempo em atividades solitárias como o videogame, o que dificulta a criação de vínculos mais efetivos e de redes de apoio nas quais eles possam pedir ajuda", explica ela.

Sinais de risco do suicídio

A Organização Mundial da Saúde (OMS) preparou uma cartilha para que professores e educadores possam identificar comportamentos indicativos de risco de suicídio entre jovens e adolescentes. No documento, a OMS esclarece que ter pensamentos suicidas ocasionalmente não é algo anormal nesta idade, já que é parte do processo de desenvolvimento da fase, quando adolescentes lidam com questões existenciais e tentam descobrir o significado da morte. "Pensamentos suicidas se tornam anormais quando a realização deles parece ser a única solução dos problemas para as crianças e os adolescentes. Temos então um sério risco de tentativa de suicídio ou de suicídio", explica o órgão.

As pesquisas também demonstram que quando há um caso de suicídio dentro de uma comunidade, como em uma escola, há mais chances de que novos casos aconteçam na sequência, pois o adolescente é mais sugestionável que o adulto. É o que se chama de "suicídio contagioso", algo muitas vezes não tratado com a devida atenção. "As escolas muitas vezes empurram para baixo do tapete o caso. Mas o correto é chamar os estudantes e conversar. Fazer uma triagem nos que podem apresentar mais riscos e até chamar psicólogos para conversar", diz Sheila Caetano, professora da Unifesp.

A OMS alerta que qualquer mudança súbita ou dramática que afete o desempenho, a capacidade de prestar atenção ou o comportamento de crianças e adolescentes deve ser levado seriamente. Como:

• falta de interesse nas atividades habituais

• declínio geral nas notas

• diminuição no esforço/interesse

• má conduta na sala de aula

• faltas não explicadas e/ou repetidas, ficar “matando aula”;

• consumo excessivo de cigarros (tabaco) ou de bebida alcoólica, ou abuso de drogas (incluindo maconha)

• incidentes envolvendo a polícia e um estudante violento

Uma pesquisa realizada com 526 jovens de 15 a 19 anos de Porto Alegre mostrou que 36% deles apresentaram o que se chama de ideação (pensamento) suicida. Destes, 36% tiveram sintomas de depressão e 28,6%, de desesperança. A baixa autoestima, os conflitos familiares, o fracasso escolar, as perdas afetivas são sintomas que, associados às condições de estresse emocional, podem colocar os jovens em grupo de risco para o suicídio, explicam estudos. E aqueles com menos amigos, mais isolados, também apresentam mais risco. 

É neste contexto que a preocupação com jogos como o Baleia Azul se torna ainda mais latente, já que os desafios apelam mais, justamente, a pessoas que costumam se enquadrar em fatores de risco para o suicídio. "Ele apela para adolescentes vulneráveis, que estão fazendo escolhas sem supervisão de adultos. São pessoas que não têm muitos amigos, estão muitas vezes isoladas, e, de repente, alguém aparece prestando atenção nelas. Pelo que sabemos até agora, é um jogo que começa com desafios fáceis, em que se recebe gratificação instantânea, como acontece com um videogame, por exemplo. Isso prende a pessoa, até que se começam os pedidos mais difíceis", explica a professora da Unifesp. "A pessoa pode entrar no jogo até por curiosidade e, no fim, acabar chantageada a praticar as tarefas e não ter os recursos para reagir ou conseguir pedir ajuda, acabando por cometer uma bobagem".

Mas há também os casos de adolescentes que já possuem transtornos psicológicos e ideação suicida e acabam se atraindo pela parte mais obscura do desafio, como Graziela, do Rio de Janeiro. "Minha filha entrou nesse jogo porque queria morrer, mas não tinha coragem. O jogo usa a fragilidade das nossas crianças para que elas cometam essas coisas horríveis", desabafa a mãe dela. Arthur Raldi responsável pela Delegacia de Repressão aos Crimes Informáticos do Rio Grande do Sul, concorda. "Esse desafio nada mais é do que a catarse da depressão sofrida pelos nossos jovens, que acabam buscando meios para exteriorizar essa depressão e chamar atenção do entorno delas", avalia ele, que investiga as auto-lesões suspeitas de uma menina de 11 anos e contatou delegados de vários Estados para traçar um padrão do jogo e do relato das vítimas. "Nosso objetivo agora não é investigar um fato isolado, mas sim apurar se existe uma organização criminosa por trás desses jogos", afirma.

Fenômeno antigo

O jogo, entretanto, não é um fenômeno novo de Facebook, que tem equipes 24 horas ativas para remover esse tipo de conteúdo, nem dos milennials, ou muito menos do século XXI. Já nos anos 90, muito antes da rede social existir e quando os computadores ainda eram um engendro tecnológico quase desconhecido, os grupos que induziam ao suicídio preocupavam as autoridades. "Nessa época, tive notícia, através de uma mãe desesperada, que seu filho adolescente havia se jogado da cobertura do seu prédio na Barra da Tijuca [zona oeste do Rio] por orientação criminosa de um site", relembra o promotor Romero Lyra, que chefiou a Promotoria de Investigação de Crimes Eletrônicos no Rio, a primeira a combater a criminalidade cibernética no Brasil e na América do Sul. "A página oferecia vantagens, superpoderes e contatos com a divindade para os jovens que aceitassem participar de competições radicais", completa Lyra. "O problema é muito complexo, e não é de hoje".

"Existe um pano de fundo nessa situação toda, temos que ampliar a nossa análise e não simplesmente pensar que o seriado ou o Baleia Azul são os únicos causadores", alerta o secretario da Saúde de Curitiba. Por isso, independentemente da ameaça do jogo ou de qualquer fator externo, é importante que os pais e educadores fiquem atentos aos sinais dados pelos adolescentes (leia no quadro ao lado). E que abram os canais de comunicação, explica a professora da Unifesp. "O suicídio vem de uma desesperança. A pessoa se vê sem opção, não acha uma saída para aquilo que está enfrentando e a morte se torna a única saída. É preciso ajudar o jovem a entender que a saída existe. Que sempre há uma solução."

O que é o Baleia Azul

A procura no Google pelo desafio virtual e temas relacionados dispararam nas últimas semanas chegando aos quase dois milhões de buscas no dia 18 de abril - o dobro do volume de procura que teve o clássico Real Madrid e o Barcelona no domingo, 23. Era o eco da mídia dando voz às primeiras mortes ou tentativas de suicídio suspeitas de terem relação com o Baleia Azul, embora jovens como Graziela já terem flertado com os desafios no ano passado.

A forma como o jogo chegou até o Brasil e outros países latino-americanos, como o México e a Colômbia, é tão incerta como sua origem. Os primeiros indícios da existência do desafio foram identificados na Rússia, após o suicídio de vários jovens que estariam participando de comunidades virtuais. A história, no entanto, misturou-se com a lenda e foi cercada de exageros, rumores e falsas notícias virais, que chegaram a elevar a 130 o número de adolescentes russos mortos por causa do jogo, entre novembro de 2015 e abril de 2016. A cifra nunca foi confirmada.

Tampouco há um explicação oficial sobre a origem do nome, que poderia estar associada ao hábito das baleias de encalharem nas praias em grupo. A chegada dos cetáceos à areia ocorre geralmente por desorientação ou por terem seguido um líder doente, mas costuma ser interpretada erroneamente como um suicídio coletivo dos animais.

O jogo estabelece 50 desafios por dia que culminam com o suicídio do participante. Segundo as investigações abertas pela Delegacia de Repressão a Crimes de Informática do Rio, é importante a figura do curador, protegido por um perfil falso na rede social. Ele apadrinha, guia e fiscaliza o novo membro durante o macabro jogo. Ainda, se demonstrada sua participação no jogo, o curador pode responder por lesão corporal ou até por homicídio, segundo a delegada do Rio Daniela Terra, que investiga o caso de Graziela e mais uma menina que confessou ter entrado no desafio.

Entre as provas propostas há metas como o uso de objetos cortantes para escrever códigos, cortar os lábios ou desenhar uma baleia no antebraço usando uma gilete como pincel. A vítima precisa enviar fotos ao curador, que provem a realização dos objetivos. No caso das meninas, ainda são pedidos registros delas em suas roupas íntimas mostrando as lesões. O curador pede ainda que o participante acorde de madrugada para ouvir músicas psicodélicas, que assista a filmes de terror selecionados por ele durante 24 horas, ou que fique nas margens de pontes e telhados. Será ele, ainda, quem marcará a data e a forma com a qual a vítima terminará com sua vida, às vezes se atirando de algum lugar, outras ingerindo quantidades absurdas de remédios.

Os desafios, em teoria, são obrigatórios –"Você tem certeza? Depois que entrar não tem mais volta", ameaçam –, mas há quem tente sair. Graziela se arrependeu de ter entrado no jogo algumas vezes, mas recebeu uma ameaça de um dos curadores do grupo: "Eu sei como fazer você voltar a jogar, e as pessoas a sua volta é que vão sofrer".

Os curadores fazem crer que sabem tudo sobre seus apadrinhados e sua família após terem se infiltrado nos seus computadores, uma ameaça duvidosa, mas que funciona. A própria Graziela disse na delegacia que continuou no jogo "por medo de represália contra seus familiares". "O que o mito da Baleia Azul reflete, realmente, não é uma tendência de suicídio entre os adolescentes, mas o medo de que a própria Internet possa nos espionar e nos controlar, como um Estado autoritário. Esse medo tem sido representado recentemente - particularmente em um episódio amplamente elogiado do seriado de ficção científica Black Mirror [no qual os protagonistas são ameaçados por hackers de revelarem seus segredos] ", refletia o escritor Russell Smith na sua coluna sobre o tema no jornal canadense The Globe and Mail.

*Os nomes da adolescente e da mãe dela foram trocados para respeitar sua privacidade

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