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Conflito na cracolândia de São Paulo eleva apreensão à espera do plano de Doria

Novo prefeito tem suavizado declarações sobre problemática e diz que em 60 dias apresentará propostas para novo programa

PM usa bombas de gás e balas de borracha contra usuários de droga
PM usa bombas de gás e balas de borracha contra usuários de drogaFolhapress/Folhapress

A noite desta terça-feira terminou no centro de São Paulo com uma cena tão conhecida quanto persistente no centro da cidade: conflito entre usuários de droga e policiais na região conhecida por cracolândia. A Polícia Militar, que dispersou dependentes químicos e moradores de rua com bombas e gás lacrimogênio, afirma que tudo começou quando policiais intervieram em uma briga entre pessoas que participavam de um culto e dependentes, que, após a confusão, passaram a jogar objetos em uma base policial. Já integrantes do grupo Craco Resiste, que desde o começo do ano tem promovido atividades artísticas na região, dizem que um grupo específico de policiais, que trabalha em escala alternada na base, costuma ter um comportamento violento e provocador com os dependentes químicos. Na versão do grupo, um dos agentes chutou um senhor, o que deu início à troca de agressões.

Durante a ação de dispersão da polícia, uma correria generalizada pelas ruas do centro acabou resultando no arrombamento e roubo de lojas na região. Oito pessoas foram detidas na 2ª Delegacia de Polícia e posteriormente encaminhadas para audiência de custódia. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, um policial militar está internado na Santa Casa depois de ficar ferido no rosto em decorrência da explosão de um coquetel molotov. Os ativistas da Craco Resiste, por sua vez, dizem que a polícia agiu de forma indiscriminada atirando balas de borracha contra crianças e idosos. O sociólogo Marcos Vinicius Maia conta que ao tentar entrar no fluxo, nome dado à aglomeração de usuários de crack dentro da cracolândia, foi impedido rispidamente por policiais. "Levantei os braços e falei que era dos direitos humanos, mas o cara simplesmente apontou a arma para mim e disse: 'Foda-se", conta.

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Independentemente das versões dos acontecimentos, o conflito só fez crescer uma preocupação entre ativistas, estudiosos e assistentes sociais que atuam na região: qual será o futuro da cracolândia na gestão do prefeito João Dória? O cenário ainda é incerto. Em coletiva de imprensa no último dia 10, a gestão deu um prazo de 60 dias para que propostas para um novo projeto, já batizado de Redenção e voltado para os dependentes químicos que vivem na região, seja apresentado – já que o atual De Braços Abertos (DBA), criado na administração de Fernando Haddad (PT) e que recebeu elogios de especialistas, não terá continuidade. À espera das novas diretrizes, o grupo de ativistas Craco Resiste resolveu se antecipar e tem promovido vigílias diárias na região, defendendo uma política de redução de danos, sem ações policiais.

A apreensão de observadores da questão é que ações como a desta terça-feira, que terminou com bombas e correria, transformem-se em uma prática recorrente. “Tudo está obscuro. Não dá para saber se o que aconteceu ontem foi uma ordem de comando ou uma situação que surgiu naquele momento, mas espero que tenha sido a segunda opção”, comenta o promotor do Ministério Público de São Paulo, Arthur Pinto Filho, que acompanha a questão há cerca de cinco anos. Segundo ele, iniciativas policiais truculentas na região já se mostraram fracassadas quando, em 2012, a Operação Sufoco “promoveu a 'procissão do crack’, em que viaturas perseguiam dependentes químicos que vagavam a esmo pelo centro”. O resultado da ação, ele lembra, foi uma multiplicação de cracolândias (ou concentrações de uso da droga) por diferentes regiões da cidade.

Por enquanto, o que se sabe é que atualmente dois programas funcionam na região: o DBA, com data para ser encerrado, e o Recomeço, do Governo do Estado de São Paulo, que foi usado como referência por João Doria durante a campanha eleitoral. De forma geral, o primeiro é focado em uma política chamada de “redução de danos”, em que os dependentes químicos são integrados a frentes de trabalho, recebem uma remuneração diária por serviços prestados e têm alojamento em hotéis na região. O segundo, que nasceu na esteira da Operação Sufoco, é focado em reabilitação por meio de internação voluntária ou compulsória. Ao contrário do DBA, ele trabalha com a abstinência total dos usuários.

Durante as eleições municipais, o prefeito Doria adotou um discurso abertamente contrário ao programa da gestão passada, apelidando-o de “de braços abertos para a morte” e o classificando como ineficiente e inapropriado. Ao assumir, contudo, abrandou suas falas e, ao comentar seu programa Redenção, afirmou que ele será uma mescla de boas iniciativas do de Braços Abertos com ações do Recomeço. Sobre a atuação policial na área, o secretário estadual de Segurança Pública, Mágino Alves Barbosa, disse que uma grande operação na área estava descartada. “Nós não podemos realizar hoje uma ação dentro do que se convencionou chamar 'fluxo', porque o resultado seria extremamente danoso”, disse à Agência Brasil.

“O pior de acabar com o De Braços Abertos é o fato de que essas pessoas estão acostumadas com programas que começam e acabam, assim, o mais prejudicial é abalar, mais uma vez, essa confiança no poder público”

O que há de concreto sobre o novo programa, que será feito em parceria com o Governo do Estado, até agora são comentários curtos e especulações. Na coletiva de imprensa para tratar do assunto, a Prefeitura adiantou que o programa terá propostas em cinco eixos: policial, social, medicinal, urbanístico e de zeladoria urbana. Em nota, a assessoria da gestão também diz que representantes da sociedade civil e do Ministério Público acompanham os trabalhos. Em outro ponto, uma reportagem da Folha de S. Paulo detalhou algumas outras possíveis questões do programa. Um exemplo de iniciativa seria a realização de um censo entre os dependentes químicos que julgaria quem deveria ser encaminhado para a internação e quem poderia, por exemplo, trabalhar em vagas de trabalho em empresas privadas, que teriam uma parceria com a Prefeitura, por salários de até 1.800 reais por mês.

Segundo a professora do departamento de antropologia da Unicamp, Taniele Rui, que coordenou a pesquisa de avaliação do DBA, realizada pela Plataforma Brasileira de Políticas Sobre Drogas, a proposta de uma parceria com empresas pode ser interessante. “Os beneficiários reclamavam que o De Braços Abertos não oferecia carteira assinada e muitos queriam um trabalho mais estável. Se houver outro regime de contratação no novo programa, isso pode ser positivo”, diz. Contudo, ela enxerga o encerramento do programa da gestão Haddad com preocupação. “O pior de acabar é o fato de que essas pessoas estão acostumadas com programas que começam e acabam, assim, o mais prejudicial é abalar, mais uma vez, essa confiança no poder público”, argumenta.

“O DBA é um programa recém-criado, com apenas três anos, e em formação. Ele tinha pontos positivos e negativos”, comenta o promotor Pinto Filho. O que há de negativo? Para ele, além de ser um programa limitado que atendia cerca de 500 pessoas e em apenas uma região da cidade, o fato de que muitos dos hotéis usados pelos dependentes químicos estavam degradados e no entorno na região da cracolândia, pessoas que já tinham condição de se desvincular do vício tinham uma dificuldade adicional para se distanciarem. Pontos positivos? O principal é que ele não tornava a abstinência em uma obrigação. Segundo Pinto Filho, tudo é muito lento no tratamento do crack e exigir isso de antemão é difícil. “No De Braços Abertos, eles têm a oportunidade de diminuir o vício aos poucos, conforme também se reintegram à sociedade”, diz.

Entre o Recomeço e o De Braços Abertos

“Qualquer proposta terá que ser feita com muito cuidado, ouvindo especialistas de todas as áreas, além de pessoas da própria cracolândia”, argumenta o promotor. Além disso, ele também fala sobre uma integração que aconteceu nos últimos anos entre o programa Recomeço, do Estado, e o DBA. “O Recomeço começou com uma visão muito dura e enfática na internação em comunidades terapêuticas, inclusive com internações involuntárias. Com o tempo, contudo, essa lógica foi abrandada e hoje o tratamento, muitas vezes acontece nos próprios CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] da cidade”, diz. Com o surgimento do DBA, Pinto Filho relata que passou a haver trocas entre os dois programas.

“Logo se percebeu que o Recomeço era uma espécie de porta giratória: a pessoa ia para uma comunidade terapêutica, ficava livre do vício durante alguns meses e logo depois voltava para a rua e para o vício, por isso o programa foi mudando ao longo do tempo e a ênfase nas internações compulsórias diminuiu”, argumenta. Apesar de concordar mais com a proposta do DBA, vê na evolução do Recomeço e na relação dos dois programas a prova de que é necessário tempo no processo. Para a pesquisadora Taniele Rui, o De Braços Abertos ganhou relevância grande, tornando-se uma referência, inclusive internacional, o que impossibilita que o trabalho seja completamente descartado. “O DBA tem força. Mesmo que se dê outro nome, ele vai estar ali martelando qualquer gestor”, diz.

“O De Braços Abertos tem força. Mesmo que se dê outro nome, ele vai estar ali martelando qualquer gestor”

Para além das políticas voltadas para os tratamentos de usuários, o grande desafio na cracolândia tem sido lidar com o chamado fluxo de usuários. “O dilema se mantém. Há tratamentos mais progressistas, outros mais conservadores, mas o que se faz em termos de gestão de espaço é outra discussão. E a questão para o fluxo vem sempre acompanhada de polícia e aprisionamento. E os projetos acabam indo por água abaixo”, afirma. “Isso dá a sensação de que quase não tem solução”. Assim, apesar de ainda não se haver nenhuma decisão oficial sobre o que será da região daqui para frente, a apreensão é grande. E uma coisa parece formar um tipo de consenso entre especialistas de diferentes correntes: a cracolândia não é caso de polícia.

Colaborou Talita Bedinelli

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