_
_
_
_
_

O arquiteto da ascensão de classe na Bolívia de Evo Morales

Freddy Mamani desenha edifícios com desenhos geométricos e as cores da cosmovisão da etnia aimará

Amelia Castilla

Os congressos disputam Freddy Mamani Silvestre, de 44 anos, criador da arquitetura da choliburguesia da Bolívia, uma nova classe social, em sua maior parte indígena, surgida no auge do Governo de Evo Morales. O arquiteto acaba de chegar do Chile, uma viagem a mais na lista de países da América Latina que o chamam para apresentar seus edifícios impactantes, decorados com desenhos geométricos e toda a gama de cores da cosmovisão aimará.

Mais informações
Assim foi a operação dos cientistas para abrir o sepulcro de Jesus
América Latina como escola de arquitetura
A excepcional arquitetura do bom senso

Tem tanto seguidores quanto detratores; onde os primeiros veem traços da arquitetura neobarroca ou neoandina, outros só percebem esquizofrenia e feiura. O livro Arquitectura andina de Bolivia, com fotos de Alfredo Zeballos, narra as conquistas de sua obra no contexto de uma Bolívia contemporânea, as revistas mais reconhecidas tomaram consciência de seu trabalho e há planos de que protagonize um filme sobre sua vida. Mas Mamani vive alheio à lenda que cria. Só quer cumprir seu sonho: “Construir pontes, auditórios e museus”. Já estreou com uma das plantas do maior museu da Bolívia, dedicado ao presidente boliviano e sua revolução em Orinoca, cidade natal de Morales.

Na rua, de terra e sem sistema de esgoto, os cachorros procuram comida entre um monte de lixo, sob um sol que queima mas não esquenta. Estamos no segundo de um prédio de quatro andares, onde um grupo de profissionais arremata a policromia em colunas e no teto. “A ideia central, neste e em outros que fiz, passa por uma construção na qual tudo seja rentável: o térreo, dividido em lojas, é dedicado ao comércio; o segundo, de cerca de 600 metros quadrados, é alugado como salão de festas ou para banquetes de casamento, com quarto para os noivos e cofre incluído; no terceiro estão localizados vários apartamentos que também são alugados e no quarto um chalé para que os donos do edifício morem. Uma vez concluído, tudo deve servir para gerar renda. É o que querem os proprietários”, conta Mamani. Para ele, trata-se de uma versão urbana das casas rurais de adobe que antes acolhiam os animais no piso térreo. Seu toque pessoal, a localização do chalé como cereja do bolo, também tem seu fundamento: “Procurar a luz do sol e a vista da cordilheira andina, com a neve de Illimani, de mais de 6.000 metros de altura, como fonte de inspiração”.

O arquiteto e sua obra.
O arquiteto e sua obra.Gabriel Pecot

Seus clientes atuais, um casal de comerciantes de El Alto, lhe pediram que amenize os tons que o tornaram famoso, inspirados nos aguayos, tecido andino usado pelas mulheres, entre outras funções, para carregar as crianças nas costas. Não querem cores fortes. Deixam claro em uma improvisada reunião com o casal e os dois filhos pequenos dentro de uma caminhonete 4 x 4 estacionada em frente à obra. Através da janela, a mãe, vestida com a roupa típica das cholitas (chapéu coco e tranças até a cintura), procura no celular a cor (“vicunha”) que deseja para a fachada. O preço desse tipo de moradia oscila entre 200.000 e 300.000 dólares. O negócio e o luxo, um luxo ostensivo do qual a nova elite boliviana se orgulha, andam de mãos dadas em uma cidade em que falta quase tudo. “É bom que ricos e pobres vivam juntos. Isso não é uma região residencial, as pessoas que prosperam no bairro com suas lojas e negócios não querem sair. Minhas obras são como manchas espalhadas pela cidade”, esclarece o arquiteto, que também mora na região.

Chegar até aqui não tem sido fácil. Ainda era um menino que levantava um palmo do chão quando seu pai o levava pela mão às obras nas quais trabalhava como pedreiro. Brincando com a areia e o vento, aprendeu uma profissão que começou a exercer oficialmente aos 15 anos. Mas logo percebeu que aquilo era pouco para ele. Começou a estudar à noite, quando saía da obra; ninguém lhe dava um bolívar. Agora, casado e com quatro filhos, carrega o diploma de “engenheiro e arquiteto”, mas ainda continua colocando a mão na massa. É acompanhado pelo filho Freddy, de 8 anos, com o rosto e as mãos manchadas de tinta e sempre atento à voz do pai, que recorre a ele para todos os tipos de recados. Conta com ajudantes, mas seu escritório consiste nos andaimes junto à sua equipe e um laptop. É onde projeta seus delirantes e esquizofrênicos edifícios, decorados com muito vidro, policarbonato e lâmpadas gigantescas trazidas da China e “montadas peça por peça na Bolívia, como se fossem diamantes”. Chegou a ser responsável por cerca de 200 trabalhadores, mas a crise causada pela queda dos preços do petróleo reduziu o número de pedidos e dizimou o quadro de funcionários. “Podem pensar que fiquei rico, mas não ganhei muito dinheiro. Um artista não busca apenas a rentabilidade econômica. Também quebro [financeiramente]”, diz.

“Não fiquei rico construindo estes edifícios, mas um artista não busca apenas a rentabilidade econômica”

Alguns dos novos cholet (fusão de chalé e cholo) abrigam quadras de futsal e piscina, e em suas amplas salas com capacidade para mais de mil pessoas são realizados desfiles de modelos de cholitas e festas badaladas, como a que trouxe a banda Broncos a esta cidade de periferia, transformada em uma trilha gigante e formada por artesãos, mineiros e comerciantes, na qual se vende de tudo por milhões de dólares, especialmente produtos provenientes da China que, muitas vezes, os comerciantes escolhem pessoalmente no país de origem. Em alguma ocasião também foram desmantelados pequenos laboratórios de cocaína. Em El Alto, impera sua própria lei. Bonecos com figuras humanas pendurados em árvores ou em postes de alta tensão alertam potenciais ladrões. Não será a primeira vez que um suposto criminoso é linchado.

Em fevereiro passado, durante um protesto contra a prefeitura, comandada pelo partido da oposição Unidade Nacional, seis pessoas morreram queimadas.

“Os aimarás são orgulhosos e irredutíveis. Antes, meu sobrenome era estigmatizado, mas, agora, sou livre para assinar meu trabalho onde quiser”

Para Mamani, tudo isso faz parte da lenda em torno dos edifícios que construiu na cidade de El Alto, que já constituem uma peculiar rota turística. Mamani tem um sonho: viajar a Barcelona para conhecer algumas das obras de Gaudí. Admira tanto sua obra quanto a de Calatrava.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_