A prisão de Cunha: o que diz Sérgio Moro ‘versus’ o que diz um professor de direito
Para o procurador aposentado Afrânio Silva Jardim, da UERJ, argumentos usados pelo juiz são "genéricos" e prisão foi desnecessária
Não é a primeira vez, em pouco mais de dois anos da Operação Lava Jato, que uma prisão feita pelo juiz Sergio Moro gera debate no mundo jurídico. Tanto que o próprio magistrado se defende, no despacho que determinou a prisão preventiva de Eduardo Cunha, de críticas feitas a ele no passado.
O EL PAÍS convidou o procurador aposentado Afrânio Silva Jardim, que já foi homenageado por Moro e hoje é crítico de algumas medidas do juiz, para comentar os argumentos usados por ele na prisão preventiva de Cunha. Professor associado de direito processual penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), ele considera que não havia motivos para a prisão preventiva, neste caso. “É uma questão de legalidade e não de simpatia com Eduardo Cunha”, justifica.
Veja abaixo o que diz Moro e o que afirma o professor de direito sobre cada ponto da prisão.
O que diz a lei sobre a prisão preventiva
O artigo 312 do Código de Processo Penal, segundo o glossário jurídico do Supremo Tribunal Federal, aponta os requisitos que podem fundamentar a prisão preventiva, sendo eles: a) garantia da ordem pública e da ordem econômica (impedir que o réu continue praticando crimes); b) conveniência da instrução criminal (evitar que o réu atrapalhe o andamento do processo, ameaçando testemunhas ou destruindo provas); c) assegurar a aplicação da lei penal (impossibilitar a fuga do réu, garantindo que a pena imposta pela sentença seja
O que diz Moro no despacho:
- Os requisitos foram todos verificados
Estão presentes todos os quesitos legais: "boa prova de autoria e de materialidade, mas igualmente os fundamentos, risco à instrução ou à investigação, risco à ordem pública e risco à aplicação da lei penal". O juiz parte, então, para a argumentação de que porque, mesmo sem o cargo de deputado, Cunha deve ficar preso
Para o professor o juiz não demonstrou indícios concretos que enquadrem a prisão em qualquer um dos três requisitos necessários para a prisão preventiva
- "O mais óbvio", é o risco à investigação ou à instrução - antecedentes
Cunha, ainda como deputado, "teria por praxe utilizar outros parlamentares federais" para conseguir "vantagens espúrias" e teria atuado para atrapalhar o andamento do procedimento do Conselho de Ética da Câmara contra ele. Cita intimidação de testemunhas e até de uma advogada na CPI da Petrobras. Para todo esse trecho, se baseia na argumentação do procurador-geral da República, referendado pelo STF ao determinar o seu afastamento temporário da presidência da Câmara
Para o professor as citações dizem respeito a condutas passadas, tomadas quando ele ainda era deputado, para evitar a cassação de seu mandato. “Não consta na decisão a existência de prova ou caso concreto que demonstre a probabilidade de ele atrapalhar as investigações policiais, que estão sendo desempenhadas em outro estado pela PF”
- Não se conhece a total extensão dos crimes de Cunha
A perda do mandato não acaba com a possibilidade de obstrução das investigações? Pergunta-se o juiz e ele mesmo responde: "Não é essa a compreensão deste juízo" por causa do "próprio modus operandi do acusado". "Embora a perda do mandato represente provavelmente alguma perda do poder de obstrução, esse não foi totalmente esvaziado, desconhecendo-se até o momento a total extensão das atividades criminais do ex-parlamentar e a sua rede de influência", que utilizaria prepostos
Para o professor não se pode decretar a prisão preventiva sem que se apontem casos concretos. “Não se pode prender para descobrir a extensão da atividade criminosa. A extensão é que deveria justificar a prisão. Há uma inversão. Seria preciso apontar sob quem ele tem influência e por quais motivos se acredita nisso. O fato de não saber não justifica a prisão”
- Necessidade de proteger potenciais testemunhas de Cunha
"É de se recear que potenciais testemunhas contra o acusado se sintam intimidadas em revelar a verdade e colaborar com a Justiça." "Em liberdade", Cunha, diretamente ou por terceiros, "pode praticar novos atos de obstrução da Justiça, colocando em risco a investigação, a instrução e a própria definição, através do devido processo, de suas eventuais responsabilidades criminais."
Para o professor isso também não é motivo para a prisão. “Qualquer indiciado em qualquer inquérito pode intimidar testemunhas. Mas é provável? Novamente é um argumento genérico e abstrato. Ele já, concretamente, intimidou testemunhas?”
- Argumentação fala em risco de "agravamento do quadro criminoso"
Nesse ponto, Moro passa a se defender das críticas recebidas pelas prisões temporárias e preventivas na Lava Jato e diz que prisão em casos de corrupção e lavagem de dinheiro "sistêmicas" é a aplicação "ortodoxa da lei processual penal". "Se a corrupção é sistêmica e profunda, impõe-se a prisão preventiva para debelá-la, sob pena de agravamento progressivo do quadro criminoso." Excepcional não é a prisão cautelar, mas o grau de deterioração da coisa pública revelada pelos processos na Operação Lava Jato."
Para o professor o argumento é uma inversão ao Estado Democrático de Direito, pois a prisão cautelar deve ser sempre uma exceção, aplicada de acordo com as situações específicas de um indivíduo. “O argumento mostra um desvio de perspectiva e que a finalidade é prender para debelar a corrupção sistêmica. Mas a prisão cautelar tem que ser dada para uma pessoa, diante de fatos específicos”, ressalta ele. “A existência da corrupção sistêmica não deixa de tornar excepcional a prisão cautelar.”
- Risco à ordem pública
Esse é um dos requisitos legais mais polêmicos da legislação, por ser considerado vago demais. Moro diz: "(Há) indícios de reiteração delitiva em um contexto de corrupção sistêmica, o que coloca em risco a ordem pública." Neste ponto, também se defende preventivamente das críticas comuns à Lava Jato: "Não se trata de antecipação de pena, nem medida da espécie é incompatível com um processo penal orientado pela presunção de inocência", e cita o STF, quando determinou o afastamento de Cunha, para se apoiar. Em suma, Moro diz que há indícios de que Cunha poderia continuar a praticar crimes, caso continuasse solto
Para o professor é difícil sustentar a tese de que ele continuará praticando qualquer crime porque ele está acuado, com o país todo prestando atenção nos passos dele. “Poder sempre pode, mas não é provável. O juiz não apontou um dado fático que demonstre a probabilidade. Mais uma vez usa uma expressão genérica, em que não explica os motivos prováveis de Cunha vir a praticar outros crimes”
- Cunha segue podendo ocultar dinheiro de propina e dificultar sua recuperação
Permanece vigente, segundo Moro, a "habilidade (de Cunha) em ocultar e dissimular propinas, com contas secretas no exterior, parte não totalmente identificada nem sequestrada". "Enquanto não houver rastreamento completo do dinheiro e a total identificação de sua localização atual, há um risco de dissipação do produto do crime, o que inviabilizará a sua recuperação"
Para o professor a prisão dele, neste caso, não evitaria que tal dinheiro fosse eventualmente movimentado por terceiros. “A prisão não evita que ele dissipe o produto do crime, se houver. Não é necessário que isso seja feito pela própria pessoa, um procurador dele poderia fazer isso”. Além disso, ressalta, o juiz já parte do pressuposto que ele tem um “produto do crime”, o que já caracteriza um pré-julgamento. “De acordo com essa premissa, enquanto não se achar todo o dinheiro, a prisão vai se perpetuar. A prisão não foi feita para recuperar dinheiro desviado.”
8 - Possível fuga ao exterior e dupla nacionalidade
Há "um risco maior de fuga ao exterior, uma vez que o acusado poderia se valer de recursos ilícitos ali mantidos para facilitar fuga". O fato é agravado, diz Moro, porque o ex-deputado tem dupla nacionalidade, italiana e brasileira, "o que poderia inviabilizar eventual extradição dada a maior dificuldade em realizá-la no caso de nacionais do país requerido".
Para o professor o argumento também não caracteriza motivo para a prisão preventiva, ou isso poderia servir de motivo para a prisão de qualquer estrangeiro que seja suspeito de um crime. Seria o caso de apreender o passaporte italiano dele. Além disso, não foi apontado pelo juiz indícios de que ele estava se preparando para fugir
9 - Por que agora?
Por fim, Moro se defende dizendo que ele está fazendo agora o que o Supremo Tribunal Federal gostaria de ter feito quando Cunha deputado, não fosse as prerrogativas legais de um político eleito por voto popular. "Adotou-se a medida possível, de apenas determinar o afastamento cautelar, muito embora a narrativa constante na decisão abranja episódios claramente justificadores da prisão preventiva"
O professor explica que o Supremo só poderia decretar a prisão de Cunha quando ele era deputado no caso de flagrante de crime, como fez no caso de Delcídio do Amaral, quando ele ainda era deputado e foi flagrado em uma gravação oferecendo a possibilidade de fuga e ajuda financeira para evitar a delação premiada de Nestor Cerveró na Lava Jato. Depois que perdeu o cargo, Cunha deixou de ter foro privilegiado e, por isso, seu processo foi enviado para a primeira instância, chegando às mãos de Moro no último dia 13.
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