Beleza e abuso na memória de um menino
Reflexão sobre lembranças e números que culpam mulheres vítimas de estupro
Você sabe o que é transar? Já viu mulher pelada? Duas perguntas que rondavam meu mundo de menino. Sim, graças à educação liberal que meus pais me deram, eu sabia o que era transar antes da maioria dos meus colegas. Ou, pelo menos, achava que sabia. Tudo era meio abstrato, entender mesmo era difícil; explicar, então… Mas eu tinha uma noção teórica da coisa e, por isso, lembro de conferenciar inúmeras vezes sobre sexo no pátio do colégio ante risadinhas, cochichos e interjeições.
E, sim, eu já tinha visto mulher pelada. Descobri uma Playboy da Maitê Proença no fundo da gaveta do meu pai e me apaixonei de imediato. Ela devia ter 30 e poucos anos e eu nutria um sentimento estranho por aquela mulher que à noite estava na novela e de dia – quando eu conseguia uma brecha – nuinha nas páginas da revista. As fotos, muitas em preto e branco, se ofereciam para mim como uma beleza a contemplar respeitosamente e em silêncio ofegante, como alguma coisa inexplicavelmente angulosa que me deixava atônito, mas que também me dava uma vontade de agir, de fazer qualquer coisa que eu não sabia bem o que era.
Um dia, na casa do Mário, foi diferente. O Mário tinha um irmão mais velho. Ele gostava de caçoar da gente, de chamar a gente de pirralho, de bagunçar nosso cabelo. Nesse dia, resolveu dizer que eu não sabia o que era mulher pelada, que nunca tinha visto. Meu orgulho não me deixou ficar quieto. Sei sim. Já vi muitas vezes. Acho que o irmão do Mário era um pouco perverso. Ele teimou que eu não sabia, fez chacota, me chamou de frutinha, até que me levou no quarto deles e me deu uma revistinha bem pequena. Aquilo não era qualquer coisa. Era uma revista de sacanagem. Sempre fui o caçula dos lugares e, convivendo com os meninos mais velhos, já tinha ouvido falar no assunto, mas nunca tinha visto. Foi um choque. Minha ideia idílica da Maitê, as coisas que eu sabia sobre transar. Nada fazia sentido. Acho que não voltei mais à casa do Mário depois disso.
Curioso que essas lembranças me ocorram agora que uma pesquisa do DataFolha deixou clara uma realidade vergonhosa: um terço dos brasileiros acredita que uma mulher não pode reclamar se for estuprada ao usar "roupas provocadoras". Bom, eu não posso entender o que sentem minhas amigas que têm lutado dia a dia contra isso (#EuNãoMereço, #MeuPrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto, #EstuproNãoÉCulpaDaVítima...), mas não deixo de partilhar da dor de ver escancarado em uma pesquisa fria e asséptica o quão primários nós somos. E, talvez, a melhor palavra não seja “primário”, porque, quando menino, as coisas me pareciam mais simples, mais belas, mais puras.
Aquele dia na minha infância foi a descoberta de que tudo, afinal, era muito mais complexo do que eu tinha imaginado. É que entre a nudez das mulheres e o sexo existia uma batalha de forças que, como eu descobriria mais tarde, era quase sempre mais opressora para um dos lados.
É que entre a nudez das mulheres e o sexo existia uma batalha de forças que, como eu descobriria mais tarde, era quase sempre mais opressora para um dos lados
Às minhas certezas infantis, ao meu deslumbramento com a ideia de transar e à beleza da Maitê, um elemento obscuro foi adicionado. Não foi tanto por causa da pornografia, mas mais pelo modo como o irmão do Mário a apresentou para mim. Assim, de supetão, com toques de escárnio. Hoje eu entendo, aquele gesto representava a possibilidade de se substituir a delicadeza sonhada pelo abuso temido. Algo tinha se alterado dentro do meu mundo. Não era a inocência perdida, mas a beleza maculada, usada brutalmente para se fazer sofrer.
Tenho muito orgulho da luta das minhas amigas, mas prefiro que elas falem. Como quando vejo alguém que sofre demais, prefiro oferecer meu silêncio consciencioso e solidário. A dor de ser abusada apenas por Ser pertence exclusivamente a elas. Ao começar a escrever, no entanto, me veio uma vontade de dizer. Dizer sobretudo que os homens precisam lembrar dos meninos que foram ou nada mais fará sentido. Lembrar de como era possível amar e respeitar – ao mesmo tempo – as coisas belas que desconhecemos.
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