A derrota de Lula e do maior partido de esquerda da América Latina
Impeachment de Rousseff é um revés para Lula, fragilizado com denúncias da Lava Jato
Do alto da galeria que em dias normais é destinada ao público, Luiz Inácio Lula da Silva e o cantor Chico Buarque viam o destino do Partido dos Trabalhadores se desenhar no andar de baixo. Dilma Rousseff, a primeira mulher a presidir o Brasil, a primeira do PT, fazia diante de 81 senadores a última tentativa de salvar seu mandato. Chico sentava ao lado de Lula, que projetava o corpo para frente e esfregava, nervoso, sua barba grisalha com as mãos.
Com semblantes indignados, eles lembravam, de certa forma, outras duas figuras que há 36 anos entraram pelas portas do colégio Sion, em São Paulo, para às 11h30 de um domingo, 10 de fevereiro de 1980, fundarem aquele que décadas depois chegaria a ser o maior partido de esquerda da América Latina. Lula remetia ao seu passado de jovem e combativo sindicalista que enfrentou a ditadura. Chico fazia as vezes de Sérgio Buarque de Holanda, seu pai, autor de Raízes do Brasil, que discorreu sobre a formação da sociedade brasileira. Na galeria em Brasília, cada qual defendia o legado de suas próprias raízes.
O depoimento de Rousseff era o auge de uma crise que arrastou o partido com violência desde 2013, quando começaram os protestos de rua no país. Um mês antes dos atos, o partido estava em seu ápice. Pesquisas mostravam que a legenda era a preferida da população, quase sete em cada dez brasileiros acreditavam que o Governo da presidenta era "ótimo ou bom". O país estava prestes a sair do Mapa da Fome da ONU, graças às políticas sociais implementadas pelo partido. O humor no Brasil era otimista: a classe média aumentou; pobres chegaram às universidades com o subsídio federal; eletrodomésticos e carros vendiam feito água diante dos incentivos fiscais do Governo aos produtores.
Mas a maré virou rápido e de forma tão inexplicável que o PT demorou a entender o que estava acontecendo. A sociedade parecia presa a um peão que rodava com força e ninguém compreendia, naquele momento, de onde vinha o impulso. O partido que por décadas incendiou as ruas com seus protestos, agora via nascer uma massa que não parecia ter comando e o rejeitava. Eram pessoas com reivindicações tão diversas que, às vezes, se mostravam antagônicas: saúde e educação públicas de qualidade, pagar menos imposto. A raiva só fez crescer entre os brasileiros desde então, e foi canalizada para o partido, que ganhou a alcunha de "o mais corrupto do Brasil", pelo histórico da compra de votos de parlamentares em 2005 (o Mensalão) e, posteriormente, das investigações da Lava Jato, que envolveram nomes como o tesoureiro do partido, João Vaccari Neto, e agora respingam em Lula.
Em paralelo, a queda das commodities e a manutenção das políticas anticíclicas por mais tempo que o necessário viraram a economia a partir de 2014, mesmo ano em que Dilma era reeleita numa eleição renhida, vencendo o senador tucano Aécio Neves por 3 milhões de votos. De lá para cá, o roteiro que trouxe a mandatária para o banco político dos réus já é conhecido. Desemprego, inflação e a dívida pública cresceram, enquanto a popularidade de Rousseff e do PT despencaram. Protestos contra a legenda tomaram as ruas, inflamados a cada notícia que denunciava os desvios e a participação do partido no esquema da Petrobras. Em nada lembrava os anos dourados quando a gestão petista chegou a ter 80% de aprovação em 2010. O sonho de ficar 20 anos no poder virou um pesadelo.
Nos seis dias do julgamento no Senado, o PT, maior partido de esquerda da América Latina, foi passado a limpo ao lado de Rousseff. Os senadores discutiram sua falta de popularidade, alegando que o "impeachment saiu das ruas". Destacaram os cortes feitos em programas sociais por conta da crise, mas também criticaram que não se cortou mais para evitar mais problemas econômicos. Enfatizaram os erros na condução da economia que levaram à alta do preço do feijão. Mas todos ali sabiam que o maior erro do PT não foram esses. Foi a política, segundo eles. Para as ruas que hostilizaram o partido, porém, pesou o rótulo de partido corrupto. Entre os milhões que se elegeram e se desapontaram com a legenda, pesou o bolso.
Nos bastidores, Lula tentou nos últimos dois dias suas últimas cartadas. Reuniu-se fora do Congresso com senadores que acreditava que podiam mudar de voto. Mas nem esses parlamentares se convenciam que a base de Rousseff conseguiria evitar o impeachment e preferiram não se arriscar. A derrota sentenciou que o capital político da estrela petista já não é mais o mesmo.
Agora, o PT encara o fracasso de ter o seu quarto mandato abreviado e tenta salvar o legado de partido que ajudou a reduzir a desigualdade social. Ao mesmo tempo, enfrenta as urnas novamente nas eleições municipais deste ano. O partido terá pouco mais de um mês para agir e evitar uma derrota acachapante nas eleições para prefeitos, que serão um termômetro do quanto o partido perdeu com todo esse processo. Com as alianças partidárias bagunçadas pelo impeachment, lançará mais candidatos próprios a prefeito, mas terá menos força em muitos municípios pela falta de apoio dos antes aliados. O objetivo principal é evitar a todo custo a derrota de Fernando Haddad para a reeleição na Prefeitura de São Paulo, o que será um desafio, já que ele aparecia em quarto lugar na última pesquisa Datafolha.
Mas, agora, na oposição, o partido terá a chance de se reorganizar. Não precisará mais ser o autor dos cortes orçamentários severos necessários diante da crise econômica. E poderá voltar a defender muitas de suas bandeiras que foram deixadas pelo caminho, com a chegada no poder e a necessidade de agradar grupos distintos. Será a chance de se reconstruir e de tentar reconquistar seus eleitores, que não se mobilizam mais nem em momentos cruciais, como se viu nas vésperas do impeachment. Nos bastidores do Congresso, há os que acreditem que o impeachment já foi o fundo do poço. Agora, munido da bandeira de "vítima de um golpe", o partido, por mais paradoxal que pareça, poderia renascer.
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