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Caco Barcellos: “Erros históricos nascem a partir da imprecisão jornalística”

Há 10 anos no 'Profissão Repórter' e assediado na Flip, o jornalista defende ouvir as vozes que soam

Caco Barcellos em Paraty durante a Flip 2016.
Caco Barcellos em Paraty durante a Flip 2016.Gabi Carrera (Globo)

Caco Barcellos (Porto Alegre, 1950) é um dos repórteres mais conhecidos do Brasil, ainda assim não é esperado que caminhar ao ar livre com um jornalista seja comparável a circular com uma celebridade. Porém, para ele, é quase impossível dar dois passos sem que alguém peça uma foto, um autógrafo ou uns minutos de atenção a um assunto que pode render a próxima “reportagem maravilhosa”. Foi assim em Paraty, onde esteve durante a última Festa Literária de Paraty, onde participou de um debate com o repórter britânico Misha Glenny.

Há 10 anos à frente do programa Profissão Repórter, na Globo, e lançando um livro sobre essa trajetória, Caco, estatura, semblante e voz ultra-amigáveis, dá atenção a todos, sem distinção. Sorri para as selfies, anota contatos e dá o seu. Afinal, para alguém que aos 12 anos saía do bairro pobre onde morava para escutar histórias de pessoas que encontrava aleatoriamente e depois escrevê-las em casa, a rua manda.

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Pergunta. Como você, sendo repórter, se sentiu participando em julho da última Flip, um evento literário no qual impera a ficção?

Resposta. Sou suspeito para falar, porque amo livros. Com 12 anos mais ou menos, tive a sorte de conhecer uns padres de uma Igreja Progressista que me passaram os primeiros títulos. Eu me apaixonei, porque era uma oportunidade única de entrar numa viagem de alguém que se aprofundou numa determinada história, virar parceiro daquele autor. Por isso, fui desenvolvendo uma paixão por escritores, mesmo os ficcionistas, que um dia tiveram pé na não-ficção. Sou especialmente fã daqueles que foram repórteres antes de se tornarem ficcionistas. Sobretudo daqueles que usam a plataforma da pesquisa para alimentar mais ainda suas fantasias. Ou daqueles que têm uma vida intensa ao lado da escrita. O que me fascina é um tipo de autoria que inclui as duas coisas: o jornalismo, com suas histórias de imersão, de oportunidade, e a fantasia.

P. Você falou em Paraty ao lado do britânico Misha Glenny, em uma mesa batizada de Os olhos da rua. Ambos são repórteres que escreveram livros sobre narcotraficantes do Rio. O seu olhar e o dele resultam muito diferentes, sendo um brasileiro e o outro estrangeiro?

R. Lendo o livro do Misha, não achei muito diferente. Muita coisa é até bem semelhante, talvez porque o que nos une é a reportagem. Ou seja, atribuir o protagonismo sempre ao outro, não a nós. Embora ele arrisque mais e seja mais crítico do que eu. Ele tem um olhar de observador externo da nossa história. Eu sou mais de mergulhar nas pessoas que estão envolvidas naquilo que estou contando.

P. Nos dias de hoje, em que há tantas ferramentas para se ficar em casa e se informar, que importância têm “os olhos da rua”?

R. No Profissão Repórter, que envolve muitos jovens chegando ao mercado de trabalho, a gente debate muito sobre a importância das redes sociais. Hoje, elas são fundamentais para o nosso trabalho, mas há algumas armadilhas também. Costumo chamar a atenção para o seguinte: o que está na rede social já foi feito. Alguém já escreveu. É legal a gente saber disso, mas a verdade está na rua. Agora... tem outro aspecto das redes que é fascinante, o de plataforma. É 100% maravilhoso que sejam um veículo para quem quer ter seu próprio jornal, site ou blog... ou até uma miniestação de TV. Minha geração não teve a menor possibilidade de fazer o mesmo. Claro que algumas pessoas hoje fazem uso abusivo disso, mas é parte do jogo também.

P. As redes estão povoadas de opiniões. Você falou durante o último Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – Abraji sobre o “jornalismo declaratório” e afirmou que novos profissionais não deveriam “atuar como porta-vozes de autoridades”. A que se referia?

R. Preciso fazer uma grande ressalva aqui, porque quando uma frase começa a circular, às vezes deixa de traduzir exatamente o que se disse. Não quero parecer pedante e nem ser o dono de verdade. Tenho o maior encanto e admiração e respeito pelo jornalismo de opinião. O que critiquei lá é quando isso vai para a reportagem. Não acho legítimo. O repórter tem o dever de ser preciso. Pode ser até analítico, mas não emitir juízo. Na reportagem de rua, fico imbuído, inclusive, de melhor informar o meu colega de opinião. Se eu não fizer isso de modo preciso e correto, ele vai emitir um juízo errado sobre aquele universo que estou retratando. E não só ele, mas também o advogado, o sociólogo, o antropólogo e mais para frente o historiador... todo mundo, na esteira do seu erro, pode cometer outros erros. Por exemplo, essa matança que a polícia militar provoca no cotidiano das grandes cidades brasileiras – isso é muito mal reportado pela mídia no seu conjunto. Quem sabe, lá no futuro, o historiador não passe em branco por esse momento da história. Não vai poder dizer “olha, os negros pobres do estado mais rico da federação estão sendo eliminados com a frequência de três por dia, um a cada oito horas”. Se o repórter não fizer esse registro preciso e contundente, a cadeia toda pode falhar, a começar pelo jornalista de opinião.

"A matança que a polícia militar provoca no cotidiano das grandes cidades brasileiras é mal reportada pela mídia no seu conjunto. Quem sabe, lá no futuro, o historiador não passe em branco por esse momento da história"

P. Que balanço você faz de 10 anos do Profissão Repórter, lançando agora um livro sobre o programa?

R. Esse livro reúne contos que a gente selecionou. São o resultado de uma surpresa permanente. Eu não acreditava que o programa pudesse durar mais do que uma semana. E toda semana a gente partia para mais um ciclo. Foi durando... e já são 10 anos. Talvez pelo meu jeito de lidar com a vida. Sempre acho genuinamente que, no dia seguinte, não conseguirei contar aquela história com a dimensão que ela tem. Claro que estou exagerando um pouco. Mas não acho que o que fizemos para trás, esses 10 anos, nos habilite a dizer “vamos fazer um grande programa semana que vem”. Amanhã, tem que começar do zero de novo. Um pouco é essa deformação de achar que sou incapaz. Fora isso, é realmente ter a consciência de que tudo é muito complicado. Quando escrevi Abusado, foram quase 600 páginas. Se fosse você, seriam outras 600 páginas. Não necessariamente eu estaria mentindo – ou você – para fazer um livro completamente diferente sobre o mesmo universo de uma favela de alta densidade demográfica. Por isso, não sei sobre amanhã. Não sei se vou conquistar a confiança de alguém com quem converse, se vou fazer a pergunta certa, que dê a dimensão de sua história.

P. Você teve outras profissões antes de ser jornalista. Por que escolheu o jornalismo?

R. Em parte, por acaso. Também porque eu era um apaixonado por histórias. Eu saía do meu bairro em Porto Alegre, um bairro muito pobre, com esgoto a céu aberto, sem água, porque tinha imensa curiosidade de saber como era a vida fora dali. Lembro que eu ia com meu vira-lata para descobrir coisas na rua. Voltava quase sempre chorando, emocionado, e escrevia a lápis, no papel, alguma coisa que tinha visto na rua. Havia uns doentes mentais, loucos de rua, que paravam para me ouvir. Só eles me davam alguma importância – e vice-versa. Aí eu, que sempre estudei nas piores escolas, escolas públicas, fui para a universidade. Meus amigos, todos de classe média e muito generosos comigo, disseram para eu estudar com eles para entrar em Engenharia, e fiz isso. Na faculdade, um dia apareceu um papelzinho no mural: “Procura-se quem faça um jornal”. Eu fui o único que se apresentou e comecei o jornal. Para minha sorte, um grupo hippie viu aquela placa e veio falar comigo: “A gente não tem dinheiro, mas quer fazer, você tem o dinheiro [da faculdade], mas está sozinho”. Aí passamos a fazer um jornal juntos, um jornal hippie, para a faculdade de Engenharia. O nome era Gota n’Água. Eles eram bons, os hippies.

P. Você tem 40 anos de profissão, ao longo dos quais trabalhou em diversos veículos. Sempre conseguiu manter sua liberdade?

R. Tenho a consciência de que a liberdade não nos pertence. A liberdade absoluta pertence ao dono do veículo onde estivermos trabalhando – no Brasil ou em qualquer lugar do mundo e de qualquer ideologia. Agora... eu luto fortemente, e felizmente não preciso lutar muito, pela minha independência. É diferente, concorda? Eu não tenho queixa nenhuma. Minha independência é hiper-respeitada. Talvez seja porque eu sou muito ativo. Não espero que o dono diga “você tem que fazer isso ou aquilo”. “Bom, se é assim, faça você”. Sempre digo isso para os meus parceiros. Se ficar passivo, você tem que obedecer a ordens. E sugiro que obedeça, se não vai ficar sem emprego. Não estou dizendo que faça um belíssimo trabalho, mas o fato é que não me envergonho de nenhum trabalho feito. Sempre dei o máximo que pude. Se ficar uma porcaria, a culpa é minha, por incompetência, por falta de talento... não da empresa onde eu trabalho.

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