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Investigação de estupro coletivo no Rio passa às mãos de uma delegada após pressão

Cristiana Bento, da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima, assume o caso As investigações sofreram reviravoltas nos bastidores, mas ainda não avançaram

A titular da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima, Cristiana Bento, agora à frente do caso.
A titular da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima, Cristiana Bento, agora à frente do caso.Tomaz Silva (Agência Brasil)

A investigação sobre o caso da jovem de 16 anos violentada no dia 21 no complexo de favelas São José Operário, zona oeste do Rio, sofreu reviravolta neste domingo, 29, ainda que haja pouco avanço nas investigações propriamente ditas. Nem Alessandro Thiers, o delegado da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática que estava apurando o crime, nem a advogada da adolescente, Eloísa Samy, estão mais no caso. Thiers foi afastado após Samy pressionar por sua saída e acusá-lo de agir de forma “machista” e de haver constrangido a vítima durante depoimento. A advogada deixou a defesa da adolescente a pedido da família. A partir de agora quem está à frente da investigação é a delegada Cristiana Bento, titular da DCAV (Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima).

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Depoimento começaria com "me conta aí"

Neste domingo, mesmo dia em que passou ao programa de proteção de vítimas da Justiça do Rio de Janeiro, a menor de idade que sofreu um estupro coletivo foi entrevistada exclusivamente pelo Fantástico, da rede Globo.

Na entrevista à jornalista Renata Ceribelli, ela descreve o que recorda da violência que sofreu e também fala do depoimento na polícia, prestado um dia depois de voltar para casa. Nele, o delegado Alessandro Thiers, encarregado do caso no momento, teria começado a conversa expondo as fotos e o vídeo dela, que foram distribuídos pela internet, antes de pedir: "Me conta aí". Ela teria pedido para interromper o depoimento – em que diz ter se sentido desconfortável todo o tempo – quando ele perguntou se ela tinha "o costume" de participar desse tipo de encontros e "se gostava". O chefe da polícia do Rio de Janeiro, Fernando Veloso, disse ao Fantástico que vai apurar se a conduta do delegado foi inadequada.

A adolescente, que se sente atualmente "em cárcere privado", tem certeza de que sofreu um estupro coletivo. Acredita que foi dopada, do contrário teria percebido que "tinha um cara debaixo de mim, um embaixo e dois me segurando quando eu acordei". Disse também que a casa onde tudo aconteceu estava suja e que seus agressores tinham fuzis e a chamavam de "piranha" e "vagabunda".

Desde que seu caso se tornou público, inclusive na imprensa nacional e internacional, a jovem diz que recebe milhares de mensagens no Facebook – grande parte delas dizendo que ela é mentirosa. Haveria, inclusive, ameaças de morte. Agora, ela quer "esquecer". Agradece às mulheres que se mobilizaram para denunciar seu caso antes mesmo que ela o fizesse, até perante a família, "por vergonha". Finaliza dizendo que deseja que seus algozes "tenham uma filha".

O desgaste ao redor da investigação do estupro coletivo – que ocorreu há uma semana e tem mobilizado o país desde que veio à tona, no dia 25 – foi o motivo pelo qual o chefe da Polícia Civil, delegado Fernando da Silva Veloso, não tratou de contornar a pressão pela saída de delegado, tomando essa decisão antes da Justiça dar seu parecer oficial a respeito. Thiers provocou controvérsia ao afirmar que não haveria comprovação de estupro, que estava investigando "se houve consentimento dela, se ela estava dopada e se realmente os fatos aconteceram”.

Em entrevista na noite deste domingo ao Fantástico, da TV Globo, a jovem disse que o depoimento dado ao delegado da divisão de Informática foi constrangedor. Depois de expor as fotos e o vídeo compartilhados na Internet diante dela, da advogada que a acompanhava e de três policiais homens em uma sala de vidro da delegacia, ele teria começado a conversa com um "me conta aí". A certa altura, "ele me perguntou se eu tinha costume de fazer aquilo. (...) Perguntou se eu gostava", relatou a menina, acrescentando que, neste momento, pediu imediatamente para parar de depor.

No vídeo que circula na Internet e no WhatsApp que detonou a apuração do caso, a jovem aparece desacordada enquanto homens a manipulam, tocam sua pelve e debocham dela. Em uma entrevista deste domingo, Veloso disse que vai analisar se houve falta de habilidade na conduta do colega. "Para preservar o delegado e garantir a imparcialidade da investigação, decidimos transferir a coordenação das investigações para a doutora Cristiana, que já estava acompanhando as investigações porque a DCAV vinha dando apoio. Ela está recebendo os autos hoje, vai se inteirar e avaliar a necessidade de uma medida cautelar, seja ela de prisão ou não", declarou.

Com a decisão, o caso saiu definitivamente da esfera da delegacia de informática – mesmo envolvendo um crime adicional ao estupro, que foi o compartilhamento das imagens via redes sociais por parte dos agressores – e se concentra agora nas mãos de Bento. Ela já vinha acompanhando o processo e participou da primeira coletiva dada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro à imprensa. Ao contrário da conduta de Thiers, a sua foi elogiada até o momento pela vítima e sua ex-advogada.

Eloisa Samy, ativista de direitos humanos, deixou caso na manhã deste domingo, quando foi dispensada pela avó da garota através de uma mensagem gravada pelo Whatsapp, em que disse que agradecia seus serviços e seu empenho, mas que sua neta passou à proteção da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio. Por telefone, Samy contou ao EL PAÍS que a adolescente “entrou no programa de proteção [às vítimas], o que não seria um impedimento [para que ela seguisse sendo sua advogada]. Mas a família foi coibida a não receber ajuda externa”. Samy e Thiers já haviam se cruzado no passado, quando o delegado pediu a prisão da ativista em 2014, parte de ofensiva legal contra os protestos anti-Copa naquele ano.

O delegado afastado do caso, Alessandro Thiers (esq.), e o chefe da polícia do Rio, Fernando Veloso.
O delegado afastado do caso, Alessandro Thiers (esq.), e o chefe da polícia do Rio, Fernando Veloso.Tomaz Silva (Agência Brasil)

Batida policial

Na manhã deste domingo, mais uma batida policial aconteceu na comunidade onde o estupro aconteceu. Uma nova coletiva de imprensa acontece nesta segunda-feira, 30 de maio, para que Cristiana Bento anuncie suas primeiras conclusões. Quatro pessoas foram ouvidas até agora no caso, mas a polícia não prendeu nenhum dos envolvidos. Dois suspeitos deram depoimentos na última sexta-feira, mas foram liberados em seguida. Outro foi detido durante uma operação da polícia no sábado também seguiu em liberdade.

Agora sob proteção da Justiça, a jovem disse que está sofrendo uma enxurrada de ofensas na Internet – apesar de muitos, indignados, terem saído em sua defesa – e já deixou sua casa junto com a família. Uma medida cautelar emitida antes disso já a protegia de pessoas que estariam tratando de intimidá-la. Um suspeito de fazer isso é Rafael Belo – um possível autor do crime, segundo afirmou Eloisa Samy.

Em seu perfil no Facebook, ela postou no sábado uma nota oficial da ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, que declarou: “A nós mulheres não cabe perguntar quem é a vítima: é cada uma e todas nós”. No post, um comentário feito por uma usuária da rede social que se diz “contra o estupro” a acusa de ser “uma maria-fuzil”. “Agora o mundo inteiro comovido por causa de uma maria fuzil que ia para a favela para dar para bandido. Quem mora em favela sabe muito bem que bandido não estupra e deixa viva para contar história”, escreveu em seu comentário – que recebeu mais de 4.200 curtidas.

Novos protestos

Muitas cidades brasileiras continuam protestando contra o crime da jovem carioca e contra a cultura do estupro em que está imerso o país. A principal manifestação registrada neste domingo aconteceu em Brasília, onde um grupo de mulheres marchou fazendo uma contagem regressiva de 30 a zero – em referência aos “mais de 30” que dizem no vídeo terem estuprado a menina. A Marcha das Flores terminou em confronto com a polícia quando algumas participantes tentaram pular a grade que as separava do prédio do Supremo Tribunal Federal. Os policiais dispararam spray de pimenta contra as manifestantes. Elas rodearam a estátua da Justiça com flores.

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