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Tribuna
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Impeachment: ritos, sussurros e um lugar na história

Ser mecanismo constitucionalmente previsto não garante a legitimidade de todo e qualquer caso específico

O Palácio do Itamaraty no dia 27 de abril, iluminado com as cores da bandeira brasileira em referência às Olimpíadas no Rio.
O Palácio do Itamaraty no dia 27 de abril, iluminado com as cores da bandeira brasileira em referência às Olimpíadas no Rio.Fernando Bizerra Jr. (EFE)
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É provável que, em meados de maio, Michel Temer assuma a Presidência da República no lugar de Dilma Rousseff, com a abertura do processo de impeachment no Senado. Essa é mais uma batalha praticamente perdida pelo Governo, que terá como última trincheira – antes dos prováveis recursos no Supremo Tribunal Federal (STF) – a votação final do processo naquela Casa, quando tentará impedir a oposição de obter o apoio de dois terços (54 senadores) pela condenação e afastamento definitivo da presidente. No atual estado de coisas, entretanto, o Governo só se salva com o surgimento de fatos novos, que alterem as expectativas dos atores políticos e econômicos, além do ânimo da sociedade. Lufadas bombásticas da Lava Jato (ou outros esquemas) sobre Temer, a cassação da chapa completa pelo TSE, uma interferência incisiva do STF sobre o processo, ou a explosão de uma guerra interna no PMDB, levando a um racha que comprometa o roteiro do impeachment, são algumas das possibilidades sobre as quais podemos apenas especular – e em relação às quais o Governo pode pouco mais do que torcer, já que não se coloca como protagonista em nenhuma.

Muitos já disseram que o impeachment é processo político, e não jurídico. Para além dos efeitos retóricos de tal afirmação, ela se confirma quando se observam a abrangência e subjetividade das justificativas elencadas no artigo 85 da Constituição para embasar o afastamento de um presidente da República. Olhado através de lentes interessadas no processo, qualquer mandatário pode ser enquadrado nas genéricas razões ali apresentadas, configurando-se como autor de crime de responsabilidade no exercício de suas funções. Na prática, desenvolve-se um mecanismo inverso – se não cronologicamente, ao menos cognitivamente. Uma Presidência com baixa popularidade, fragilizada por seus próprios erros e pela combinação de crises política e econômica, representa uma oportunidade para outras forças políticas – da oposição e da própria base de apoio – chegarem ao Governo sem ganhar as eleições. Esses atores interessados no afastamento buscam apoio político para o impeachment, e no processo (com o suporte de advogados que lecionam, autointitulados juristas) pinçam as justificativas jurídicas mais plausíveis e menos contestáveis em eventuais recursos a posteriori. A discussão sobre a caracterização de crime de responsabilidade da presidente está deslocada, portanto. O foco deve ser outro.

Popularidade baixa e problemas na gestão não são motivos para o afastamento do chefe de Governo

Ser mecanismo constitucionalmente previsto não garante a legitimidade de todo e qualquer caso específico, principalmente se encararmos os fatos atuais sob uma lente muito mais importante – a da democracia. O rito do impeachment, sobre o qual muito papel e tinta foram gastos, é menos importante que o rito democrático. Eleições livres e periódicas e respeito à duração dos mandatos figuram como requisitos mínimos de qualquer definição de democracia ou discussão sobre sua qualidade. Ao caso brasileiro, some-se o detalhe: uma democracia presidencialista. Popularidade baixa, desconexão entre promessas de campanha e o pós-urna, e problemas na gestão de setores-chave para o país não são motivos para o afastamento do chefe de Governo em um regime presidencialista. Para isso, crimes de responsabilidade graves, muito claramente especificados, minimamente comprovados e que representem uma ruptura em relação a práticas toleradas anteriormente – como as manobras fiscais – teriam que ser debitadas na conta do presidente.

Por pior que seja a gestão e por maior que seja a dificuldade no relacionamento entre executivo e legislativo, o que caracteriza esse sistema, em oposição ao parlamentarismo, é que os mandatos são independentes e com origem distinta; o mandato do presidente não depende de aprovação do legislativo para cumprir o tempo previsto. Se parte das forças governistas está insatisfeita, tem todo o direito de passar para a oposição. Dilma poderia fazer um governo de minoria, tendo que lidar até 2018 com um Congresso dominado por forças hostis à sua agenda – como acontece com o presidente dos EUA em muitas ocasiões. Seria provavelmente uma gestão muito ruim, mas as regras do jogo democrático estariam mantidas. Cada sistema tem a dor e a delícia de ser o que é: a separação Executivo-Legislativo traz problemas, mas é também a beleza de um regime que dificulta a concentração de poderes em um mesmo grupo político. O que não é admissível é encurtar o mandato do presidente ou acochambrar um parlamentarismo de ocasião, branco ou da cor que seja, apenas para justificar a poda dos poderes presidenciais. Isso não é próprio de democracias.

Deixando de lado as próprias figuras presidenciais, as diferenças em relação ao impeachment de Collor são muitas e evidentes; destaco aqui apenas duas. À época, o principal partido de oposição foi um ator importante e bastante atuante para o andamento das investigações e do processo de impeachment no Congresso, e para a mobilização das ruas. No entanto, o PT não buscava com isso um atalho para o poder: recusou integrar o Governo Itamar Franco, de olho na consagração popular que viria (mas não veio) em 1994. Agora, o PSDB já ensaia a dança do acasalamento com Temer, falando em nomes (como José Serra) para o eventual novo ministério. Por outro lado, o então vice-presidente Itamar Franco não foi o principal articulador do impeachment, visando tomar o lugar de Collor no Planalto. Já Michel Temer mostrou a que veio desde a lamuriosa carta sussurrada em dezembro. De fazer inveja aos piores e mais piegas momentos de Florentino Ariza (personagem de García Márquez), a missiva foi a senha para o início da ofensiva do PMDB. Partido federalizado, com autonomias (as seções estaduais) que se mantêm interdependentes apenas para a atuação concentrada no Congresso, diferentes setores do PMDB passaram a ver como concreta a chance de chegar ao comando do Governo federal por um atalho - sem passar pelas urnas e pela amarração entre as seções regionais, necessária para o lançamento de um candidato presidencial competitivo, o que quebraria a autonomia estadual e desagradaria a alguns caciques em prol de outros. Não se pode falar em normalidade institucional ou democrática quando o vice-presidente sabota o presidente de maneira aberta, numa típica conspiração palaciana.

Como chegamos até aqui? De um lado, há os erros grosseiros, de toda ordem, do Governo Dilma e do PT. A incompetência na gestão econômica é o mais visível e grave de todos (e parcialmente derivada de opções erradas ainda sob Lula). A nova matriz econômica, vendida em tom triunfalista pelo Governo, mas carente de substância teórica (apesar de encampada a posteriori por parte da academia, embalada ou não em conceitos igualmente ocos como ‘novo desenvolvimentismo’ e assemelhados), definitivamente não deu certo. Quando alguns sinais já apontavam para isso, principalmente em termos da insustentabilidade fiscal do modelo em época de retração, o Governo resolveu dobrar a aposta, piorando o quadro.

Além disso, o PT subestimou, em 2005 como agora, o impacto que escândalos de corrupção podem gerar sobre partidos de esquerda – vide o exemplo da esquerda italiana. Argumentar, de modo pueril, que "todos fazem" o que o PT fez baseia-se na falsa premissa de que todos os eleitores possuem o mesmo grau de tolerância em relação a desvios – para ficar apenas em um dos limites dessa conjectura.

No campo político vale destacar que o PT, muito competente como oposição, nunca aprendeu a ser bancada de Governo, ator central no relacionamento entre executivo e legislativo. De um lado, pelo esquizofrênico e fratricida comportamento de alguns de seus grupos internos, capazes de fazerem uma oposição mais dura ao próprio Governo do que o PSDB ou DEM. De outro, pela constante inabilidade política na construção e manutenção das coalizões e no jogo parlamentar cotidiano, por um partido que reluta em dividir espaço e que prefere apoiadores a aliados. Um partido que comanda o executivo e lidera uma coalizão formalmente majoritária no Congresso não pode ver uma figura como Severino Cavalcanti alçada à presidência da Casa. O Severino de 2005 foi um embrião ingênuo do fenômeno Eduardo Cunha, parido novamente pelo próprio PT dez anos depois. O lançamento de um candidato oficial à presidência da Câmara sem chances de vitória acabaria comprando uma guerra visceral contra o presidente eleito, além de deixar o partido do Governo sem qualquer assento na Mesa Diretora, instância vital ao controle do processo legislativo e, consequentemente, ao relacionamento Planalto-Câmara. Essa estratégia kamikaze fazia parte de um plano ainda mais genial, elaborado nas antessalas da Presidência da República: diminuir a dependência em relação ao PMDB, desidratando o poder do partido. Além do desafio no legislativo, a ideia era inflar partidos de aluguel, como PSD e PROS, para esvaziar o poder peemedebista. No entanto, quem não é páreo para um Severino Cavalcanti não pode dar um nó tático em raposas que comandam o Congresso há tempos. Planos ‘infalíveis’ como esses, dignos de um Cebolinha ou de Pink e Cérebro (o leitor escolhe, a depender de sua geração), desaguariam nos 367 votos pelo impeachment no 17 de abril.

Uma Presidência com baixa popularidade, fragilizada por seus próprios erros e pela combinação de crises política e econômica, representa uma oportunidade para outras forças políticas – da oposição e da própria base de apoio – chegarem ao Governo sem ganhar as eleições

Mesmo tomados em conjunto, sob o ponto de vista da institucionalidade democrática esses fatores não justificam um impeachment; e tampouco seriam suficientes para o andamento político do processo. Para isso, outros componentes foram agregados. O Brasil evoluiu de modo considerável, em termos institucionais, de governança, transparência, participação e inclusão social desde 1994. No entanto, temos uma espécie de ‘maldição institucional dos dez anos’: a cada decênio, mais ou menos, um grave retrocesso institucional acontece. A aprovação da emenda da reeleição em 1997 foi o primeiro. A reeleição não é um problema em si: há democracias consolidadas com ou sem a regra, e com variações na quantidade de reconduções permitidas. O problema é quando a medida é aprovada de modo casuístico: a alteração das regras do jogo pelo dono da bola não é saudável do ponto de vista da normalidade democrática. Novo retrocesso institucional veio em 2007, quando o STF derrubou uma medida que teria freado o desarranjo partidário dos últimos anos. A cláusula de desempenho de 5% dos votos na eleição para a Câmara fora aprovada em 1995 (Lei 9096), com implantação prevista a partir das eleições de 2006: concedia-se, assim, um tempo razoável de adaptação aos partidos médios e pequenos, preocupados com os efeitos da não superação da cláusula (menos tempo de TV e menos recursos do fundo partidário). Seguiram-se a esse veto à cláusula diversas outras decisões do STF e TSE acerca da fidelidade partidária, acesso ao fundo partidário etc., quase sempre com o efeito prático de facilitar as migrações partidárias e ajudar a multiplicar a quantidade de legendas. O cúmulo veio em 2012, quando o STF criou a esdrúxula figura do ‘sistema proporcional por deputado’: parlamentares que mudavam de partido levavam junto os recursos do fundo partidário e do tempo de TV proporcionais a sua votação. Incompreensão acerca do caráter proporcional do sistema eleitoral, ou pura má-fé: não há uma terceira alternativa que explique essa decisão, que violou os princípios da representação proporcional (por partido) inscritos na Carta de 1988. Essa aberração institucional fez parecer viável, aos estrategistas do Planalto, o plano de desidratação do PMDB; ao mesmo tempo, fez explodir a fragmentação do sistema partidário, criando parte do caos que assistimos hoje.

Por fim, há um retrocesso recente, que pode ser institucionalizado em caso de vitória final do impeachment. Muito se fala sobre a judicialização da política e a politização da justiça. Mas já estamos alguns passos além, no terreno da partidarização de setores do judiciário – tão perniciosa quanto a partidarização dos quartéis dos anos cinquenta e sessenta. Promotores e procuradores messiânicos, juízes ególatras, ministros do STF imbricados na luta partidária cotidiana: combinados a relações incestuosas com setores da mídia, todos prestam um desserviço à democracia. O fim de combate à corrupção não legitima todos os meios empregados. O judiciário, importante ator no sistema de checks and balances da democracia brasileira pós-1988, não pode atuar como fonte de desequilíbrio ou braço jurídico de conspirações e disputas partidárias. O êxito do processo de impeachment, ao ‘validar’ tais procedimentos, pode significar que o retrocesso permanecerá como fonte de instabilidade nos anos vindouros – e mais um fator a comprometer a qualidade de nossa democracia.

A crise da democracia brasileira deve levar a algumas reflexões entre os cientistas políticos que estudam o país. O presidencialismo de coalizão, centrado numa toolbox à disposição do executivo para incentivar o legislativo a cooperar (cargos, emendas ao orçamento, poderes legislativos da Presidência etc.), não é uma ciência exata. Como destacaram alguns poucos dentre nós (como o cientista político argentino Vicente Palermo, em artigo publicado na revista Dados em 2000), os elementos de negociação executivo-legislativo não são suficientemente destacados na literatura especializada, assim como a importância de dois outros fatores: a adequação entre estilo do presidente e arranjo institucional, e o papel da envergadura e do capital político do presidente para o sucesso da gestão. Dilma não é Collor, mas tampouco é FHC ou Lula. Como primeiro presidente, na democracia atual, que nunca ocupou cargo eletivo anterior, talvez tenha faltado à mandatária o entendimento sobre o funcionamento institucional do país (sobretudo em relação ao Congresso), vital para garantir o papel que cabe à Presidência nessa morfologia: de eixo central de negociações e emanação de agenda para diversos outros atores políticos.

Agora, talvez deixemos de ver o impeachment como medida excepcional para incorporá-lo como parte do toolbox do legislativo: uma arma política engatilhada contra presidentes que não rezem pela cartilha da maioria do Congresso. É dessa forma que o impeachment tem substituído o golpe militar como uma das fontes de instabilidade política na América Latina desde os anos noventa – como mostra o excelente livro de Aníbal Pérez-Liñán, Presidential Impeachment and the New Political Instability in Latin America (2007).

Por fim, será preciso refletir sobre a desconexão entre consolidação e estabilidade institucional, de um lado, e cultura política do outro. O eleitorado brasileiro continua ocupando, há muitos anos, as últimas posições em quase todos os surveys sobre aderência a valores democráticos – basta comparar com os vizinhos latino-americanos, por exemplo, nas pesquisas do Instituto Latinobarómetro. Tempo de democracia e consolidação institucional (e aumento de escolaridade, poderíamos acrescentar) não têm se traduzido em fortalecimento de uma cultura política democrática. Apoio à democracia continua se confundindo, em grande medida, ao apoio a governos bem-sucedidos, sobretudo na economia. Mas falar em surveys se torna supérfluo quando vemos apoiadores do afastamento (com escolaridade acima da média) desfilando, fazendo selfies, carregando cartazes com ‘Meu partido é o Brasil’ (frase-pesadelo dos cientistas políticos), e brandindo patos amarelos pelas ruas de São Paulo – imagens amplamente exploradas (e ridicularizadas) pela mídia internacional, muito mais crítica ao processo em curso do que os maiores órgãos brasileiros. (Se aquela e seus analistas são parte do esquema lulo-petista, é algo ainda a se conferir.)

Se parte das forças governistas está insatisfeita, tem todo o direito de passar para a oposição

Com algum esforço no enquadramento dos crimes de responsabilidade, o impeachment poderá até ser legalizado, do ponto de vista constitucional; mas permanecerá ilegítimo da perspectiva democrática. A inconsistência do processo e das acusações, a falta de estatura moral dos acusadores – começando por Eduardo Cunha, - e a bizarra situação do vice como chefe da conspiração compõem o cenário de golpe contra a democracia. Povoando os jornais nas últimas semanas, analistas que esbanjam boas intenções têm até concedido uma certidão de honestidade a Dilma Rousseff, mas apenas para dizer que é hora de ‘virar a página’ (via impeachment ou renúncia) e deixar o novo Governo começar, em nome do fim da polarização e da recuperação do emprego, dos investimentos e do crescimento. Não é assim que a banda toca numa democracia, contudo. Essa é uma página que não se vira: cria precedentes perigosos e incerteza institucional, numa fragilização da democracia que no médio/longo prazo trará efeito inverso sobre a economia, afugentando investimentos produtivos e forçando a elevação da taxa de juros, por exemplo.

A democracia comporta gestões melhores e piores, e à oposição (recente ou antiga) cabe fustigar o Governo à espera de novas eleições, quando disputará a narrativa sobre a administração que se encerra em busca do voto popular. Qualquer coisa fora disso recoloca o país no circuito das repúblicas bananeiras - seja uma quartelada clássica, seja a congressada e conspiração palaciana ora em curso. O vice ansioso parece muito atento às pompas e circunstâncias, e preocupado com a autoimagem e seu lugar na história. Pois bem: deve saber que está chegando à Presidência de braços dados com o que há de pior na política brasileira – incluindo o deputado misógino, travestido de valentão linha-dura, capaz de regozijar-se com a dor da tortura alheia, numa das piores canalhices já registradas no parlamento brasileiro. Envergonhado, o velho Ulysses daria um pito em Michel por tirar Eduardo Cunha do rodapé da crônica política de 2015 para fazê-lo primeiro-ministro do governo peemedebista, e talvez ocupante da cadeira presidencial por algumas ocasiões. Temer está garantindo, assim, um lugar menos decorativo na história política brasileira – história que comporta, no entanto, papéis de todos os tipos. O dele dificilmente será dos mais honrosos.

Pedro Floriano Ribeiro é Celso Furtado Visiting Professor na Universidade de Cambridge (St John’s College), e professor de ciência política na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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