Anonymous: as caras por trás da máscara
Antropóloga Gabriella Coleman revela as chaves do movimento ‘hacker’ e as histórias dos ativistas
O encontro foi combinado usando um telefone público, como nos velhos filmes de espionagem, como na nova era das comunicações vigiadas. Sabu, o influente integrante do Anonymous, plataforma anônima de ativistas cibernéticos, andava meio sumido havia algum tempo, mas se mostrava disposto a encontrar Gabriella Coleman pessoalmente. Para não deixar nenhum rastro cibernético do encontro, pediu à antropóloga canadense, com quem só se comunicava nos fóruns secretos do Anonymous, que usasse uma cabine telefônica. Naqueles dias de setembro de 2011, as ruas próximas a Wall Street buliam com manifestantes que se somavam ao movimento Occupy Wall Street, a onda de indignação que havia chegado ao continente americano.
Ficaram no Chipotle, uma lanchonete situada no St. Marks’s Place, em Tompkins Square Park (Nova York), ponto de heroína nos anos 1990. Sabu chegou balançando com desenvoltura seu corpanzil (“você vai me reconhecer, tinha dito a ela”) e lhe estendeu a mão enorme. Por um instante, Coleman teve medo que esmagasse seus dedos.
A entrevista com esse personagem-chave da história do Anonymous, o suposto grande traidor, o dedo-duro que reduziu sua condenação ficando a serviço do FBI e entregando vários de seus correligionários, serviu para Coleman, mais uma vez, derrubar mitos. O nova-iorquino de origem dominicana que tinha diante de si, um cara do bairro, com duas primas pequenas sob seus cuidados, procedente de uma família que negociava heroína, era o oposto da prototípica imagem do nerd branco, antissocial e com espinhas que se tranca em um porão escuro na frente do computador para derrubar o sistema. “Pareceu-me um personagem de filme”, conta por telefone ao EL PAÍS de Montreal a pesquisadora canadense. “Gostei mais dele em pessoa, porque online era um sujeito arrogante”.
Em Hacker, Hoaxer, Whistleblower, Spy: The Many Faces of Anonymous (Hacker, Fraudador, Ativista, Espião: Os Muitos Rostos do Anonymous, ainda sem edição no Brasil), considerada uma das maiores conhecedoras do fenômeno Anonymous em todo mundo, destila o fruto de cinco intensos anos de imersão nos sinuosos labirintos dessa rede de grupos de ciberativistas interconectados. A professora da Universidade McGill, em Montreal, manteve-se conectada aos fóruns secretos da organização durante cinco horas por dia ao longo dois anos e contatou alguns dos mais significativos ativistas de uma plataforma impermeável cujos membros se comunicam de forma anônima em fóruns secretos de acesso complicado.
“Estabeleci uma relação próxima com alguns deles”, diz a antropóloga canadense. “Os canais de chat e o anonimato fazem você se sentir muito próxima das pessoas; precisamente por não saber com quem está falando, contam-se coisas muito pessoais. Aconteceu comigo: não me diziam coisas que pudessem ajudar a localizá-los, mas me falavam de questões existenciais, da felicidade, da depressão”.
Coleman narra ao longo de mais de 400 páginas, recheadas de aventuras, dilemas éticos, diálogos cifrados em chats secretos e vibrantes encontros com os ativistas que se escondem atrás da máscara, a metamorfose de uma comunidade de trolls que se transformaram com o passar do tempo em ativistas políticos; nerds que trocaram a brincadeira pesada e provocadora por uma luta pela transparência, pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos que os levou a transgredir as leis algumas vezes. Os objetivos de sua luta não param de evoluir, são imprevisíveis: pouco mais de um mês atrás, declaravam guerra ao Estado Islâmico.
O Anonymous nasceu em 2008 como uma plataforma anônima de trolls que resolveu atacar a Igreja da Cientologia. Sua graduação política se formou no calor do WikiLeaks, no fim de 2010, com o ataque aos sites do Visa, MasterCard e PayPal, depois que essas empresas fecharam a torneira das doações destinadas à plataforma de vazamentos. Um viés político que se reforçou com o ativismo para contribuir para a derrubada do regime do tunisiano Ben Ali no início da primavera árabe, um episódio decisivo ao qual se seguiu o apoio aos movimentos de indignados mundo afora.
O primeiro grande hackeamento público do Anonymous, o da empresa de segurança HBGary, aconteceu em 2011. “Nesse caso não foi por questões políticas, mas por vingança”, afirma Coleman. A HBGary estava pronta para fornecer nomes de ativistas do Anonymous ao FBI e pensaram que era preciso impedir aquilo. Ao hackear a empresa norte-americana, descobriram que ela tinha proposto a outras duas lançar uma campanha para desacreditar o WikiLeaks. “Isso os motivou a continuar hackeando a empresas de segurança”. Os ativistas já não se dedicavam só a lançar ataques de denegação de serviço – DDOS, em inglês – a fim de paralisar o acesso a uma determinada página. Esse tipo de grafitagem digital abria caminho para complexas operações de hacking.
Na operação HBGary, o jornalista e membro do Anonymous Barrett Brown, de 33 anos, atuou como porta-voz nos comunicados à imprensa. Coleman, que relata no livro as interações com alguns dos mais relevantes ativistas da plataforma, diz que Brown era um estrategista que cometeu o erro de atrair a atenção da imprensa em um movimento que rejeita qualquer vislumbre de personalismo. Como resultado, ganhou a inimizade de seus correligionários. No início de 2015, o juiz Samuel Lindsay o condenava a 63 meses de prisão por ameaças a um agente do FBI, obstrução a um mandado de busca e apreensão e colaboração no hackeamento da empresa de inteligência e segurança Stratfor. Pouco depois de saber da sentença, com o espírito sarcástico que caracteriza o Anonymous, declarou: “Boas notícias. O Governo dos Estados Unidos decidiu hoje que, como tenho feito um excelente trabalho investigando o complexo ciberindustrial, enviam-me agora para investigar o complexo industrial das prisões”.
O hacker que na realidade estava por trás da operação da empresa Stratfor é Jeremy Hammond, um dos ícones do movimento, condenado a 10 anos de prisão. Um ativista que se declara anarquista (tem o A tatuado no ombro esquerdo) e que, antes de ingressar no Anonymous, já tinha sido preso oito vezes entre os 18 e os 28 anos por participar de protestos políticos – em uma dessas ocasiões queimou uma bandeira olímpica como protesto pela candidatura de Chicago 2016 –. Coleman o conheceu no Metropolitan Correctional Center de Nova York em setembro de 2013, depois de se corresponder com ele pelo correio durante um ano – Hammond gostava de colar os selos sempre ao contrário. “No início era um cara que me assustava, porque estava sempre muito irritado e era muito duro, muito radical”, explica a autora da pesquisa que se tornou um livro. “Mas quando o conheci me pareceu incrivelmente encantador, inteligente, tranquilo, divertido. E eu respeito o fato de não conseguir ficar de fora da ação política”.
– Considera que seu livro empatiza com o Anonymous mais do que você desejava?
– Não. Acredito que é honesto com o que sentia naqueles dias. Decidi deixar clara minha empatia. Acredito que há suficiente informação para que o leitor possa chegar a conclusões diferentes das minhas. O maior perigo hoje em dia está nas pessoas que não fazem nada. E o Anonymous talvez não faça sempre o mais adequado, mas há coisas que não funcionam neste mundo e é preciso fazer algo a respeito.
Gabriella Coleman, que não utiliza telefone celular para não ser rastreada, atribui seu compromisso político à influência de sua mãe. Filha de uma refugiada de guerra russa de origem venezuelana e de um norte-americano, cresceu em Puerto Rico, em um ambiente “privilegiado”, cercada de crianças que queriam ser advogados ou médicos. “Eu era uma outsider”, conta. Mulher conscientizada com a questão ambiental, confessa entre sorrisos que um dia, na escola, organizou uma coleta de fundos dizendo que era para o Greenpeace quando, na verdade, se destinava a uma organização “mais radical”.
Desfilam nas páginas de The Many Faces of Anonymous outros hackers eminentes como Mustafa al Bassam, ou Tflow, membro da ramificação LulzSec, filho de uma rica família de iraquianos radicados em Londres que foi preso aos 16 anos – “uma pessoa brilhante, desmontava todos os estereótipos” – e que trabalhou para a organização Privacy International. Ou Donncha O’Cearbhaill, irlandês que estudava Ciências Químicas na Universidade de Trinity, na Irlanda, e que, depois de passar pelo Partido Pirata, trabalha na organização Equalitie – “busca os mesmos objetivos”, diz Coleman, “mas por meios legais”.
Coleman derruba o mito de que o Anonymous funciona como uma colmeia na qual ninguém detém o poder. “Existem estruturas múltiplas. Em 2011, os hackers que foram parte do Anonymous e logo de [suas ramificações] LulzSec e AntiSec acumularam tremendo poder e atenção por suas operações de hacking”. A imprensa sempre procurou um líder, mas eram equipes divididas em função de tarefas diferentes: havia estrategistas, organizadores, agitadores, hackers. Alguns se conheceram pessoalmente – houve até casamento. Muitos, como os integrantes do LulzSec, nunca se viram frente a frente, conta Coleman.
Coleman derruba o mito de que o Anonymous funciona como uma colmeia na qual ninguém detém o poder
Seu livro foi elogiado pela profundidade da pesquisa, mas também recebeu críticas por ser um tanto condescendente com o movimento. Ela sustenta que a posição do antropólogo, que deve aproximar-se tanto quanto puder do objeto de estudo, é diferente da do jornalista. Declara sua identificação com algumas das causas do Anonymous e sua admiração por alguns de suas ativistas. O que não lhe impede de verter algumas críticas. “Não gosto nem um pouco quando revelam informação pessoal de cidadãos que não têm nada a ver com uma operação, é uma violação da privacidade que também incomoda alguns membros do Anonymous”. Na Operação BART liberaram informação pessoal de clientes da Bay Area de San Francisco; dados de familiares de Anthony Bologna, um policial que usou gás de pimenta contra duas jovens ativistas. “É pura vingança contra uma pessoa, é perigoso, não é justo”. Entre as ações mais criticadas estão alguns de seus erros, como a divulgação da identidade do policial que matou o jovem Michael Brown em Ferguson (Missouri) e a divulgação da identidade da vítima de uma violação brutal por parte dos membros de um time de futebol americano em Steubenville (Ohio) em 2013. Os jornalistas e veículos de comunicação também erram, argumenta Coleman. “Vou apoiar o Anonymous e vou apoiar o jornalismo”. E confessa: “Estou interessada em criar mais ativistas. Como outsider que aponta o dedo para eles não alcançaria esse propósito. Nisso fui muito pragmática”.
Referências
V de Vingança. Graphic novel de Alan Moore, popularizou a imagem da máscara de Guy Fawkes, anarquista que tentou dinamitar a Câmara dos Lordes inglesa em 1605.
V de Vingança. Filme de 2006 com Natalie Portman e Hugo Weaving.
We are Anonymous. Livro da jornalista Parmy Olson.
4chan. Site em que nasceu o movimento no ano 2008.
We Are Legion. Documentário de 2012 assinado por Brian Knappenberger.
Hacker, Hoaxer, Whistleblower, Spy: The Many Faces of Anonymous. Gabriella Coleman. Verso, 2014. 464 páginas. Sem edição no Brasil.
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