Confesso meus sofrimentos por ser casada com um ‘nerd’ de ‘Star Wars’
Ele registrou nosso filho como Lucas, fomos jantar e ele apareceu vestido de Darth Vader...
[Artigo sobre o Orgulho Nerd originalmente publicado em espanhol em 16 de dezembro de 2015]
Escrevo aqui às escondidas, sem o meu companheiro saber. Neste exato momento, ele está xingando a tela do celular. Passou as últimas três horas com um boneco do Falcão Milenar em uma mão enquanto com a outra ficava teclando e brigando com a tela porque não consegue o ingresso para assistir, no dia da estreia, Star Wars – o despertar da força. Eu, no entanto, devo ser uma das poucas pessoas deste mundo que não se interessam por aquilo que aconteceu naquela galáxia. Nunca consegui assistir até o fim os filmes da saga, porque me dão sono, não entendo quem era o pai de Darth Vader, e continuo sem entender por que milhões de adultos mantêm profundas discussões sobre uma coisa que chamam de “universo expandido” (que não tem nada a ver com Stephen Hawking). No entanto, e como que por uma arte da magia, tenho uma foto de meu casamento em que apareço cortando o bolo com uma espada laser e com o som da Marcha Imperial ao fundo. Enfim: sou casada com um nerd de Star Wars. Sou feliz? Devo admitir que sim. Essa obsessão do meu companheiro afeta a nossa relação? Também devo dizer que sim. E muito. Eis os meus sofrimentos...
1. Quando um nerd de Star Wars se casa, o resto todo se mobiliza
Depois que ele pediu a sua mão, nunca se deve baixar a guarda, porque os amigos do seu companheiro (com o consentimento dele) tentarão fazer com que o casamento do amigo pareça algo surgido na mente do próprio George Lucas. Seja mais inteligente do que eu e fique de olho na quantidade de espadas laser que ficaram na sua casa antes de chegar ao altar, porque, quando você menos espera, trazem o bolo e um amigo manda a Marcha Imperial para que você o corte com esse artefato luminoso nojento que já deu meia volta ao mundo.
2. Por falar na espada laser: ela pode viajar como bagagem de mão?
Embora eu jamais tivesse imaginado que poderia um dia passar por uma situação como essa, comprovei na própria pele que uma espada laser (elas costumam ter entre 85 cm e 1 metro de comprimento) não pode ser registrada como bagagem de mão por dois motivos. Primeiro, porque muitos agentes aeroportuários a veem como uma arma; e eles têm razão: ela é isso mesmo! Segundo, porque não passa por um guarda-chuva feminino com luzes. Pode acreditar: já tentamos isso.
3. Darth Vader procura uma namorada
Imagine combinar com alguém um encontro romântico, e, quando você chega ao restaurante, quem está à sua espera, na mesinha de sempre, é o próprio Darth Vader. Isso aconteceu comigo há alguns anos. Depois de uma das várias convenções em Madri, meu marido esqueceu a roupa normal e veio vestido de vilão para comer uma pizza à luz de velas. Seria melhor ter vindo vestido de Chewbacca? Não tenho certeza...
4. Bem-vindo à minha República Independente da Galáxia
Minhas amigas costumam me perguntar por que eu tenho uma sala toda decorada com figuras de Star Wars, sendo que não tenho o menor interesse no assunto. A verdade é que, quando passamos a morar juntos, decidimos definir com clareza os limites da sua coleção. O acordo foi o seguinte: tudo bem, enche a sala com os seus bonequinhos, mas, em compensação, eu fico com o segundo quarto, que acabei transformando em um refúgio pessoal, com um escritório e um closet maravilhoso. Em troca, tenho jantado há anos sob o olhar atento de Darth Vader e de um outro pobre homem cheio de chifres e com o rosto vermelho e preto. Não me importo. Ao final, chega uma hora em que, de tanto vê-los, parece que fazem parte da família.
5. As convenções dos fãs são a melhor hora para fazer compras
Uma das grandes vantagens de ter ao meu lado uma pessoa assim é que pude conhecer os lugares mais distantes do planeta graças à existência de uma invenção maravilhosa chamada convenções de fãs. Costumam ser encontros onde grupos de adultos vestidos como seus ídolos galácticos entram em contato pessoalmente com os atores dos filmes, compram estranhos artefatos relacionados à saga (que depois não cabem na mala) e, de modo geral, passam um bom tempo falando sobre o tal universo expandido. Depois de deixar o meu nerd ocupado nas convenções de meia Europa (como a Film & Comic Com de Londres ou a Jedi-Com de Dusseldorf), pude me fartar comprando sapatos sem receber nenhuma palavra de reprovação. Motivo? Ele terá gasto o dobro em uma fantasia exclusiva assinada por um dos milhões de androides que povoam os filmes. Chamo isso de “minha grande vantagem competitiva”.
6. Intimidade com os atores de ‘Star Wars’
Graças às loucas aventuras de meu marido, acabei circulando por Madri com atores (intérpretes de papeis secundários como ewoks, oficiais imperiais, soldados rebeldes ou storm troopers) dos primeiros filmes de Guerra das Estrelas que participam das convenções. Além de eles não se incomodarem com o fato de os filmes da saga serem totalmente entediantes para mim, são pessoas encantadoras que não tem medo de experimentar coisas novas. Graças a esses encontros, tenho efetuado um importante trabalho de exportação cultural de uma de nossas melhores tradições, a saber: o juernes (neologismo que mistura jueves —quinta-feira— com viernes —sexta-feira).
7. O dia em que, à minha revelia, deu ao nosso filho o nome de Lucas
Se existe alguma coisa que eu descobri nos últimos anos é que sempre existe alguma frase de Star Wars que se adapta a qualquer momento importante na vida de um nerd do tema. Se você diz que gosta dele, ele não tem o menor pudor em responder “eu sei”, à moda de Han Solo. Ele tem um sobrinho? Então, irá chamá-lo de seu pequeno Padawan e ficará numa boa. Um filho? A primeira coisa que ele diz é “eu sou seu pai”, com uma voz cavernosa, enquanto aproveita que a mãe está meio entorpecida depois do parto para registrá-lo como Lucas (como George) no cartório. E se você lhe pergunta quando é que ele vai fazer aquilo que vem prometendo fazer há meses, ele responde que “sua falta de fé o incomoda”.
8. O que dar de presente para ele?
Tentar dar um presente a um fã de Star Wars é bem mais complicado do que parece. Não vale qualquer coisa. Eles são, antes de mais nada, colecionadores com um gosto muito bem definido. Depois de dez anos mergulhada no mundinho da coisa galáctica, cheguei à conclusão de que há quatro tipos de produtos: coisas para crianças, os quero-e-não-posso (ou seja, peças de roupas que, aparentemente, não fazem justiça ao personagem que representam ou que são de baixa qualidade), os ganhar-ganhar (peças de preço médio que são um bom presente e não deixam você totalmente arruinada) e coisas de edição limitada que custam mais do que uma bolsa da Prada. A hora de optar por uma dessas alternativas é a pior de todas...
9. Talvez você não saiba, mas o seu melhor amigo será o vendedor de uma loja de quadrinhos
Preste atenção. São sujeitos de olhar disperso que vestem camisetas estampadas com monstrinhos. Exatamente como o seu filho. Se você os encontra como atendentes de uma loja de quadrinhos, pelo amor de Deus, não os deixe escapar. É muito importante conhecer um atendente de confiança disposto a falar dos filmes com você e interpretar o que você quer dizer quando lhe pede um boneco de um senhor com uma pistola e uma espécie de muflão galáctico por menos de 50 euros (tradução simultânea: Han Solo com um Bantha). Se você encontrar um vendedor que a compreenda, valorize essa relação: ela vale o seu peso em ouro.
10. Cuidado com o vocabulário
Se você gosta do jogo do Tabu, você vai passar momentos maravilhosos conversando com um starwarsmaníaco. As regras são bem simples: basta lembrar que existem algumas poucas palavras que você não deve dizer de modo algum. Por exemplo, quando vê um bom amigo vestido de Darth Vader, não vá falar da sua fantasia. Pois não se trata de uma fantasia, mas de um traje ou cosplay. Eles acumulam uma imensa quantidade de horas de esforço pessoal para que depois alguém utilize uma palavra que se aplica a qualquer trapo mal costurado e comprado em uma loja qualquer. Da mesma forma, meu companheiro e seus amigos colecionam figuras e bustos, não bonecos. Bonecos são coisa de criança, e os fãs de Star Wars são adultos que gastam muito, mas muito dinheiro mesmo, em figuras. Capisce?
11. A memória seletiva existe
Convivo com uma pessoa que vive se esquecendo de comprar verduras no supermercado, mas que é capaz de lembrar os nomes e as ligações familiares de tudo que passa pela cabeça de George Lucas. Da mesma forma, ele não é capaz de lembrar do dia exato do aniversário de seus amigos, mas tem gravada na mente a data de cada uma das estreias de filmes galácticos do momento, do passado e do futuro. Se fizessem um programa especial de Saber y Ganar sobre Guerra nas Estrelas, ficaríamos milionários...
12. O dia em que o ADSL quase explodiu
Todo fã de Star Wars que se preze é capaz de ficar horas em uma fila (e acampar, se for preciso) para comprar um ingresso para ver os filmes no dia da estreia em uma poltrona bem localizada. Se em um ataque de modernidade os cinemas resolvem vender os ingressos pela Internet, um bom nerd não terá nenhuma dificuldade para se enfiar no banheiro do trabalho dez vezes por hora fingindo uma indisposição estomacal para acionar seu celular e tentar comprar os ingressos no momento em que eles são colocados à venda.
Ao ver o meu marido tentando comprar os ingressos com um celular em cada mão e o meu laptop, entendi que, se ele quiser ir à estreia, não terá nenhum pudor em queimar o seu computador e o seu ADSL (modem) atualizando a página cem vezes por minuto. Também aprendi que se a conexão não explodiu de vez nesse dia é porque a Força está sempre do lado do nerd.
13. Qual ‘cosplay’ fica melhor em mim, querida?
A estreia dos filmes da saga é uma data marcada em contagem regressiva no calendário da cozinha e que transforma qualquer casa no backstage do Oscar. E já que o fã de verdade possui vários trajes (não fantasias, como você já sabe), para ir à estreia, a semana anterior ao evento se parece bastante com um dia de reflexão eleitoral. Você não pode dar conselhos a ele sobre qual cosplay usar, pois se trata de uma decisão absolutamente pessoal, e, ainda por cima, tem de apoiar aquilo que a maioria disser, mesmo que ele decida se vestir de lagarto galáctico. O melhor é cair fora no meio.
14. Não dê um pio
Nesse mundinho, estragar uma surpresa é visto como uma declaração de guerra. Todo bom fã da saga odeia as pessoas que comentam os filmes antes de que ele o veja. O elemento surpresa faz parte da experiência. Uma pequena amostra: entrei no Loot Crate, que é uma espécie de Birchbox para os nerds da Guerra nas estrelas, e eles se recusaram a me revelar o que havia dentro da sua caixa de edição especial de Star Wars, que eu queria dar de presente para o meu garoto. Por que? Para evitar que os compradores pudessem ver os conteúdos antes de receber a caixa. Todo um programa...
15. Quem tem uma cristaleira tem um tesouro
A cristaleira é o elemento essencial da vida de todo nerd . Ela permite que ele exponha e proteja a sua coleção contra seus inimigos mortais: as mãos das visitas e a poeira, que é bastante conhecida na comunidade galáctica pela sua capacidade de acabar com as cores de suas figurinhas. Pelo visto, uma Leia escrava com um biquíni minúsculo perde muito de seu charme se ficar descolorida. Se alguma vez você se perguntar por que nunca consegue encontrar cristaleiras nas lojas Ikea, essa é a explicação.
16. Me not speak english
Tenho uma tese bem fundamentada segundo a qual a língua falada em Star Wars é um dialeto do Esperanto. Não existe outra explicação para o fato de que fãs de diferentes nacionalidades, que falam diferentes línguas, conseguem se entender e são capazes, aparentemente, de entabular uma conversa. Um rapaz com uma camiseta de Darth Vader foi a única pessoa que conseguiu indicar ao meu marido onde ficava a loja mais próxima quando nos perdemos, durante umas férias, em um vilarejo distante na República Tcheca, onde, além de fazer um frio de matar, ninguém falava inglês. Claro que se tratava de uma loja de quadrinhos.
17. Não quero desembalar os meus brinquedinhos
Se a galáxia de Star Wars às vezes desafia as leis da física, as manias dos fãs às vezes colocam em xeque as leis da lógica. Meu marido, por exemplo, compra muitas figuras que nunca tira de sua embalagem original porque elas podem desvalorizar. Um argumento bastante lógico, que me sugere que, no fundo, ele tem um projeto de criar para nós um fundo para a aposentadoria com base em réplicas galácticas. No entanto, quando lhe pergunto quais são os seus planos em relação a como vende-las futuramente, ele não quer nem ouvir falar nisso. As figuras são dele, e ele as usufrui melhor quando estão com a embalagem intacta. Não é inacreditável, querido leitor?
18. Meu tio nerd gosta de tudo
Os amantes de Guerra nas Estrelas costumam ser os tios preferidos de seus sobrinhos, porque não hesitam um só instante em se jogar no chão para brincar com suas naves espaciais ou para lhes ensinar a lutar com uma espada laser. Além disso, tem uma extraordinária capacidade de assistir filmes em sequência sem se aborrecer, habilidade extremamente valorizada pelos ultrapassados pais dessas criaturas.
19. Boa gente, de coração grande
Uma história emocionante. Se algum dia você vir um Jedi no corredor de algum hospital é bem provável que ele faça parte da Fanvención ou da Legión 501, duas organizações beneficentes que aproveitam as suas grandes habilidades com as espadas laser para distrair as crianças hospitalizadas. Eles sempre recebem novos voluntários de braços abertos. Assim, se você for mordido pelo mosquito da galáxia, não hesite em procurá-las.
20. O nerd nasce, se forma e também evolui
Às vezes fico pensando que a Galáxia deve ser como a Caixa de Pandora, porque, depois que ela é aberta, não param de sair coisas nerds. Meu marido, como tantos outros fãs, tem todo tipo de universo paralelo como entretenimento secundário. Batman, Super-Homem e o Homem-Aranha convivem tranquilamente com Darth Vader e com um Delorean nas prateleiras da minha sala. Imagino que essas diversões paralelas têm algo a ver com a promessa de George Lucas de não fazer mais filmes de Guerra nas Estrelas (será?), mas, de todo modo, me levam a pensar que o meu freak nunca deixará de me surpreender.
Conclusão.
Definitivamente, e parafraseando o Mestre Yoda, se você quiser ficar com um super fã de Star Wars, a escolha é sua, mas não procure por isso. Pouco importa se o nerd nasce assim ou se forma; o fato é que ele se mantém e pode evoluir a níveis inimagináveis, daí a importância de se preparar com antecipação. O único consolo que me resta é que o meu nerd pelo menos não gosta de futebol.
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