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Música
Análise
Exposição educativa de ideias, suposições ou hipóteses, baseada em fatos comprovados (que não precisam ser estritamente atualidades) referidos no texto. Se excluem os juízos de valor e o texto se aproxima a um artigo de opinião, sem julgar ou fazer previsões, simplesmente formulando hipóteses, dando explicações justificadas e reunindo vários dados

Neil Young arde como ninguém aos 70 anos

Com sua cabeleira grisalha e seu sorriso desbaratado, tudo nele parece possível, por mais contraditório e inverossímil que seja

Fernando Navarro
Neil Young, em foto feita no final dos anos 70.
Neil Young, em foto feita no final dos anos 70. Getty Images

Aos 70 anos, completados nesta quinta-feira, há algo assustadoramente taciturno e ao mesmo tempo inspirador em Neil Young. Com pinta de rancheiro vagabundo, é como se tivesse levado ao pé da letra seu verso mais famoso, aquele que Kurt Cobain deixou escrito na carta de despedida antes de se suicidar e que vemos na canção Hey Hen, My My (Into the Black): “É melhor arder que apagar-se lentamente”. Young, também conhecido como Cavalo Louco, arde de corpo inteiro.

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Em cima do palco, lançando discos todo ano, publicando livros de memórias, imerso em diversas cruzadas políticas e sociais (da luta contra Bush e a defesa do carro elétrico ao boicote contra a Starbucks), ou até mesmo dando uma guinada em sua vida sentimental, o músico canadense parece muito longe de se apagar. Mas há algo mais importante: ele combate como poucos a anquilose (rigidez nas articulações). O velho Neil é como um garoto irreverente mas seguro de si, que não se importa em ser contraditório, que fica de pé quando lhe ordenam sentar-se e que se dedica de corpo e alma à música, aniquilando o símbolo de estrela da música popular que é, mas alimentando o seu gigantesco significado para a cultura contemporânea.

É de uma vitalidade contagiosa. Ao contrário de pesos-pesados como Elton John e Billy Joel, não quer viver de renda. Também não há sinais de que possa se transformar numa lenda de ouro e marfim como Van Morrison, que visitou a Espanha recentemente e está empenhado em ser um artista vip, exclusivo e distante da cena atual. Apesar de sua condição de roqueiro que nunca morre, Neil Young tampouco quer ser um Rolling Stone, uma pantomima de perfeita execução, nem um Bruce Springsteen, ocupando as capas de todos os jornais com certo ar messiânico. Quase parece uma estranha conjunção entre Bob Dylan e Tom Waits. Há uma rara simbiose entre essa necessidade de estrada e de se sentir vivo com a música (de Dylan), mostrando sem dissimular todas as suas obsessões, carências e virtudes não só em discos atuais mas também ao abrir velhos arquivos sonoros, e essa loucura interna que parece dominar sua arte (de Waits), embora a loucura de Young não parece ser tão estudada.

Mas Neil Young é Neil Young, sem necessidade de odiosas comparações. Nada nele é produto de uma campanha de marketing

Mas Neil Young é Neil Young, sem necessidade de odiosas comparações. Nada nele é produto de uma campanha de marketing nem um estudo de si mesmo para se tornar uma personalidade mais atrativa. Como sua música atual, vibrante e urgente nesse desbocamento elétrico, é algo tão volátil como explosivo. Após superar um aneurisma cerebral há quase uma década, Young se jogou na música, nos palcos, na atividade irrefreável de não ficar quieto nunca. Isto se reflete em seus álbuns desde Living with War, lançado em 2006 como resposta acelerada e corrosiva à paranoia belicista do Governo de George W. Bush.

De fato, seus últimos trabalhos, começando pelo mais recente, The Monsanto Years, e passando por Storytone, Psychedelic Pill, Americana, Le Noise e Fork in the Road, pecam pela falta de melhor produção. Em algumas passagens, é até preocupante ver o resultado, como se ninguém controlasse o produto, o que leva as canções a uma crueza extrema de distorção e excesso sonoro, com um método de música de garagem que, embora tenha seu lado romântico e batalhador, adoece de autêntica qualidade. Claro que é bom ver Young com os colegas da banda mostrando que curtem o que fazem e que podem disparar canções com força total. Mas, no fim das contas, algo do melhor Young, autor de Harvest, Zuma e Ragged Glory, fica pelo caminho.

Isso parece indicar uma coisa: na sua idade, Neil Young já não se importa em fazer obras-primas e discos para a posteridade. Menos ainda se importa em fazer com que sua música venda e que toque nas rádios ou em decifrar que diabos deseja o executivo da gravadora. À sua maneira, Neil Young quer arder. Assim como seus dois livros de memórias, Neil Young – A Autobiografia e Special Deluxe – A Memoir of Life & Cars (sem tradução em português), que são fragmentos desordenados de sua vida, diários pessoais cheios de caos e obsessões por carros, cães e sons (decidiu há pouco tirar suas músicas do Spotify e desenvolveu seu próprio reprodutor musical, PonoMusic), Young faz leituras nada acessíveis, inclusive pesadas em certos momentos, mostrando um fogo incontrolável, uma chama tão viva como imprevisível. Você pode pensar que ele está louco, mas jamais vai achar que é um pedaço de madeira, imóvel, insosso, destinado a se transformar em serragem.

Aos 70 anos, Neil Young é um enorme fogo que não se apaga. Com sua cabeleira grisalha e seu sorriso desbaratado, tudo nele parece possível, por mais contraditório e inverossímil que seja. Como diz no prólogo do segundo volume de memórias, Special Deluxe: “Eis a história da orgulhosa estrada das dúvidas”. Tomara que possamos percorrer ainda muitos anos essa fascinante estrada com ele, enquanto continua ressoando nas caixas e em nossa cabeça o verso que melhor o define: “É melhor arder que apagar-se lentamente.”

Fernando Navarro é redator do EL PAÍS e escreve sobre música no blog La Ruta Norteamericana.

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