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Coluna
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Desconectados do mundo, uni-vos

Ou como a desconexão é a nova, revolucionária e humilhante ideia de elegância para os viciados on-line

Mulheres olham o celular durante a semana da moda de Tel Aviv (Israel)
Mulheres olham o celular durante a semana da moda de Tel Aviv (Israel)JIM HOLLANDER (EFE)

Todo mundo maluco, naquele tricô ou crochê de smartphone, dedos no ritmo do free-jazz da ansiedade... E ela, a desconectada, me matando de inveja. Como chamava a atenção aquela moça na tarde desta quinta-feira no aeroporto Santos Dumont, cidade do Rio de Janeiro, que olhou para o seu aparelho apenas para fazer o check-in e depois desligá-lo ao entrar no avião rumo a Congonhas, SP, vôo 3927 da TAM. Parecia a única mente sã em corpo idem no meio de um hospício, embora fosse vista como a pirada entre os ditos “normais”, acontece.

A inveja da desconexão é maior do que a inveja do pênis detectada pelo doutor Sigmund Freud. Dá até raiva. Blasfemo: como essa desalmada consegue e ainda fica com essa cara blasê de que nada rola no mundo agora mesmo a cada post?! Parece que vive numa aldeia russa dos tempos de Tolstói, cacete, que inveja, que lindeza, que admirável mundo velho em uma mina tão jovem e bela.

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Estou observando, atento leitor, não uma Macabéa, a matuta que tinha toda uma vida contra ela, a criatura e personagem da escritora ucraniana-pernambucana Clarice Lispector (livro A hora da estrela), a beradeira, coitada, que amava tanto e do mundo moderno da cidade grande nada recebia de volta, nem um cafuné de um desconhecido ou de um macaco do zoológico.

Estou de olho na desconectada e relax rapariga moderníssima, vestido de bolinha em branco e preto retrô, botas baixas elegantemente tesudas como uma Valentina dos trópicos (vide HQ da heroína de Guido Crepax) e todo o resto aparentemente voltado para a tendência mais futurista, a começar pelo desenho das sobrancelhas, por exemplo, chique no grau mais derradeiro.

Que inveja da gata desconectada, talvez a única saudável criatura perdida entre os doentes. Os doentes da cotação da Bolsa de Valores, os doentes da informação vazia, os doentes da sacanagem das redes sociais, os doentes que esperam nudes —os tarados talvez sejam os mais perdoáveis e inocentes destes enfermos do sanatório geral—, os doentes imaginários que nem sabem do que padecem, amém, todavia vivem com as torneiras das besteiras virtuais permanentemente abertas, que estrago.

Ponto parágrafo e parêntesis: um certo tipo de doente até entendo, os torcedores e admiradores do Peixe, o maior time de futebol de todos os tempos. Estes buscavam todo gênero de notícias e comentários sobre o massacre da véspera no dilúvio do Morumbi: São Paulo 1x3 Santos. Jogo válido pela Copa do Brasil. Os tarados ludopédicos também são perdoáveis, com todo desconto por fazer parte deles.

Galáxia de Gutenberg

A criatura desconectada sabe que o redemoinho no Twitter e no Facebook causa um certo estrago. A criatura, porém, sabe, mais ainda, que alguns belzebus como o Eduardo Cunha, ainda presidente da Câmara, não se vão com qualquer soprinho curtível ou compartilhável. A lesadamente linda moça do Santos Dumont compreende que em matéria de política o que ainda vale é devagar devagarinho do jornal impresso. A gata pertence à galáxia de Gutenberg. Deve ler revista gringa de moda no papel, aposto –ainda existe a “The Face”?, quase indaguei a guria. Deixa quieto.

A desconexão é a nova e grande ideia de elegância em público. Tão elegante que parece até esnobe

Sim, a desconectada é linda. Não sei se de fato ou por não ligar para essa baixaria da vida tecnológica –quer prova maior de lindeza? A desconexão é a nova e grande ideia de elegância em público. Tão elegante que parece até esnobe. Que me perdoem os mui conectados, incluindo este mesmo que vos tecla, mas a desconexão é humilhantemente bonita e superiora. Neste sentido, a ralé tem mais barões. Não era o caso da Lola desconectadíssima, uma brasileira moderna de classe média com ares de modelo ou ex-modelo existencialista. Estaria indo para a SP Fashion Week? Bem possível.

Só os desconectados ganharão o reino dos céus. Como é cafona e deselegante essa coisa que a gente faz o tempo todo em público. Como somos escravos. Ainda bem que esse ano consegui um certo detox, mas apenas por uma semana, senhor piedade. Consegui graças a um ninho de amor nas montanhas de Gonçalves (MG), na serra da Mantiqueira, com a minha camponesa polonesa, também evoluída nas artes das desconexões mútuas.

Lá no futuro, não esse futuro fake do 21 de outubro que previu a película norte-americana, talvez nos mostrem como fomos cafonas, babacas, bregas, terráqueos paroquialíssimos e de uma certa forma idiotas ao nos entregarmos a esse jogo, a essa velocidade artificial que não nos leva do nada para o lugar comum. Talvez lá para 2046, quando todo mundo voltará a se amar, quem sabe?!

Desconectados do mundo, uni-vos, essa será a grande e revolucionária rede silenciosa, igual a uma rede nordestina debaixo de um coqueiro em alguma praia do futuro.

Xico Sá, escritor e jornalista, comentarista do programa “Papo de Segunda” (GNT), é autor de “Os machões dançaram –crônicas de amor & sexo em tempo de homens vacilões” (ed. Record), entre outros livros.

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