António Lobo Antunes: “Fernando Pessoa me aborrece até a morte”
O eterno candidato português ao Nobel publica no Brasil ‘Não É Meia-Noite Quem Quer’
Os livros devoram as paredes. “Já não cabem. Tenho que mudar para um apartamento maior”. E por que não joga fora algum? “Nunca. A maioria é muito ruim, mas não consigo. Tenho muito respeito pelos livros”. Um dos quartos do apartamento de António Lobo Antunes (Lisboa, 1942) é preenchido apenas com as traduções dos cerca de trinta livros que publicou. No estúdio escreve um professor canadense especializado em sua obra. Na Holanda, seu livro Caminho Como uma Casa em Chamas está na quarta edição, e no Brasil será publicado Não É Meia-Noite Quem Quer (Alfaguara, com previsão de lançamento em 19 de outubro), um retrato da condição humana ambientada na guerra de libertação de Angola. Como em cada uma de suas obras, quando Lobo Antunes escreve, dói; e quando fala, também.
Pergunta. Obrigado por receber-nos em sua casa em Lisboa, a cidade de Pessoa.
Resposta. Não sou um fã de Pessoa.
P. Caramba! O Livro do Desassossego...
R. O livro do não sei o quê me aborrece até a morte. A poesia do heterônimo Álvaro de Campos é uma cópia de Walt Whitman; a de Ricardo Reis, de Virgilio. Eu me pergunto se um homem que nunca fodeu pode ser um bom escritor.
P. Também não há nada de novo em Portugal?
R. Não é um problema de Portugal ou da Espanha. O problema é que hoje não há grandes escritores na Europa — na Irlanda, talvez —, mas não na Inglaterra ou na França, que no século passado teve dois gênios, Proust e Céline. No século XIX você tinha 20 ou 30 gênios na Europa.
O livro do não sei o quê [de Fernando Pessoa] me aborrece até a morte”
P. E nem na América?
R. Na América Latina existem; nos Estados Unidos, não; embora eu goste de Cormac McCarthy. É um problema geral, é só ver quem ganhou os últimos prêmios Nobel.
P. O senhor é que não foi.
R. Não, nunca o ganharei, embora eu sempre apareça nas apostas, como os cavalos. Eu ganhei quase todos os prêmios, mas o que me interessa neles é o dinheiro.
P. É verdade, quando lhe comunicaram que tinha ganho o Juan Rulfo, o senhor respondeu: “Quanto?”.
R. Fiquei mal. Deram-me a notícia em uma videoconferência ao vivo, e os jornalistas mexicanos começaram a rir. Foram 100.000 euros.
P. E o prestígio do prêmio não lhe importa?
R. O prestígio do prêmio é dado pelos escritores, não o inverso.
P. Dedicado à psiquiatria, o senhor é um escritor tardio; até os 37 anos, com Memória de Elefante (1979), não havia começado a publicar.
Não há grandes escritores na Europa. Na Irlanda, talvez”
R. Ninguém me queria; nem em Portugal ou em lugar algum; mas um editor americano, que não tinha lido o livro, o publicou. Foi capa de The New York Times, Los Angeles Times e The Washington Post e se você tem esses jornais, tem o mundo. O primeiro que me chamou da Espanha foi Jacobo [Martínez de Irujo], da [Editora] Siruela, com quem comecei a publicar. Passei semanas escrevendo na casa dele em Ampurdán.
P. Aquele livro se baseava em suas experiências como psiquiatra, Comissão das Lágrimas vem do seu passado militar em Angola.
R. Não me interessa escrever romances de guerra por respeito aos mortos. Estou interessado em pessoas em circunstâncias extremas. Eu queria desertar quando estava lá, mas meu capitão me disse: “Não vá, que a revolução se faz por dentro, não nos cafés de Paris”.
P. E ele estava certo.
R. Sim, não há nada mais difícil do que uma guerra. Aos 18 anos decretei que seria um gênio, mas você chega à guerra e isso desaparece imediatamente; você é um entre muitos. Há duas coisas magníficas do espetáculo da guerra: a beleza da coragem física e o mais horrível, a covardia. Depois de 60 anos você continua com pesadelos por causa das coisas horríveis de que participou. O que proponho é por que não se sente culpa, por que é tão fácil matar e morrer.
P. A crítica diz que Comissão das Lágrimas trata das torturas a Virinha, a capitã do Movimento de Libertação de Angola.
R. Não foi bem compreendido, na verdade é sobre a morte de Jonas Savimbi em um atentado cometido pelos órgãos de inteligência portugueses, israelenses e norte-americanos, que o localizaram pelo celular.
P. A vida sempre em alerta.
Quando não escrevo não me sinto bem, sinto como uma angústia”
R. Quase sempre. Quando o Benfica jogava, escutávamos as partidas no rádio e virávamos os alto-falantes para o lado de fora. Durante 90 minutos não nos disparavam um único tiro. Os guerrilheiros eram do Benfica, como nós.
P. O senhor torce pelo Benfica?
R. E pelo Atlético de Madri, dois times do povo. Estou muito feliz que El Niño [o atacante Fernando Torres, do Atlético de Madri] voltou. Não é o que foi, mas demonstrou ser homem de palavra, que já é coisa rara nos homens.
P. Compromisso, coragem, covardia... O senhor repara muito nos valores básicos das pessoas.
R. E honestidade. Ao escrever, é preciso ser honesto. Mario Vargas Llosa, por exemplo, é um escritor honesto e um prêmio Nobel bem dado. Frank Sinatra dizia: “Posso ser um canalha, posso ser um mafioso, mas quando canto sou completamente honesto”.
P. O senhor gosta muito de música.
R. Eu gosto muito, mas já não ouço os agudos; não ouço os violinos.
P. Diga-me que o senhor gosta de fado.
R. Não me interessa muito. Depois de ouvir dois, acaba sendo muito monótono.
P. E o flamenco?
R. Ah! Isso sim, muitíssimo. Essa sensualidade, essa beleza; Jacobo [Martínez de Irujo] costumava me chamar quando descobria um novo cantor para que fôssemos ouvi-lo juntos. Aprendi mais com alguns saxofonistas de jazz, como John Coltrane e Charlie Parker, do que com escritores.
O que me interessa dos prêmios literários é o dinheiro”
P. O que o senhor aprendeu?
R. O fraseado, a musicalidade do fraseado. No fim das contas eu sou um ladrão, um homem que está sempre procurando coisas no lixo. Meus livros nascem do lixo.
P. E não encontrou um livro que lhe mudasse a vida?
R. Sim. Na minha juventude, não sei como, caiu em minhas mãos Nueve novísimos poetas españoles (José María Castellet, 1970). Eu o li e compreendi que não podia continuar a escrever a merda que escrevia. Cada um dos nove era melhor do que eu. O prólogo já era maravilhoso. Como poderia me comparar à Ode a Venecia ante el mar de los teatros, de Pere Gimferrer.
P. E agora, o que salvaria de sua obra?
R. Nunca falo dos livros que acabei. Não leio as provas nem a edição. Quando os entrego, eu esqueço. Acabou. Não pense mal de mim, mas tenho orgulho da minha obra.
P. Não lê as críticas?
R. Eu sei o que eu escrevo. Não preciso lê-las. Nem as de Harold Bloom, embora nesse sentido me pareça mais importante Steiner, o maior gênio que existe. Você sabia que ele tem o piano de Darwin em casa? Muitas vezes confundimos nossos gostos com nossas paixões. Borges é bom, mas eu não gosto; Roberto Bolaño é bom, mas não compreendo o fenômeno, talvez porque ele morreu jovem, talvez eu não goste porque o conheci. Esse é o problema da crítica. Se ela corresponde aos seus gostos, é bom; se não, é ruim.
P. O senhor escreveu 30 livros em 37 anos. Não vai parar?
R. O que posso fazer? Quando não escrevo não me sinto bem, sinto como uma angústia; uma coisa física difícil de explicar. Tenho a impressão de que me fizeram para escrever.
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