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A MEMÓRIA DO SABOR
Coluna
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Antofagasta em busca de sua cozinha

A cidade usa suas raízes e as de seus vizinhos para definir sua identidade

Uma peixaria no porto da cidade chilena de Antofagasta.
Uma peixaria no porto da cidade chilena de Antofagasta.

As portas do mercado San Pedro se abrem por volta das seis da manhã em Antofagasta. É uma porta bem comum, que cheira a pão recém-assado, peixe, especiarias e fritura. O cheiro do peixe frito domina este lugar, onde desembarcam os pescadores dedicados à pesca artesanal. Um cartaz demarca o território a alguns metros dos domínios de São Pedro: “É estritamente proibido vender e limpar peixe que não seja da região [reineta, merluza e outros]”. Na frente dele, um pescador veterano limpa e prepara sobre uma mesa o que acaba de tirar do barco: congrios vermelhos, um achado —peixe enorme, de olhos grandes e carnes firmes, com um sabor pronunciado de frutos do mar—, algumas cabrillas [tipo de garoupa] e um par de peixes-cães com seus dentes afiados e bem separados. Não há reineta, proibida nesta parte do porto e tão abundante do outro lado do muro que o separa do terminal pesqueiro, o mercado onde se vende o que chega de outras partes do litoral chileno, que é quase tudo. Em troca há piure roxo, um marisco intenso e fascinante que só existe nessas águas, e um ouriço que tira o soluço.

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A reineta é tão comum que parece da casa na cidade mais habitada do norte do Chile, em pleno deserto de Atacama. Se você perguntar, muitos dirão que é o peixe típico de Antofagasta, mas não é pescado ali. Poucos reconhecem sinais de identidade próprios. Antofagasta nasceu boliviana há quase 150 anos para transformar-se em chilena pouco depois e crescer em toda a sua riqueza mineira —salitre primeiro, cobre, ouro, prata, lítio e iodo depois— à base de vizinhos importados. Chilenos de todos os lados, peruanos, colombianos e bolivianos definem sua natureza.

A cidade hoje vasculha suas raízes e as de seus novos vizinhos para definir seus traços de identidade em um projeto de coletivo, La Chimba, articulado em torno da cozinha. Trata-se de qualificar o presente para garantir o caminho no sentido do futuro, valorizando os três grandes eixos de sua realidade gastronômica: a recuperação e revalorização dos produtos do mar, a criação de uma indústria agrícola em torno do cultivo hidropônico e o registro de uma cozinha própria. Procuram-se sabores.

Se você perguntar, muitos dirão que a reineta é o peixe típico de Antofagasta, mas não é pescada lá

O sanduíche de peixe frito do San Pedro pode ser um deles. Hoje é de jurel, chega sobre dois pedaços de pão francês e é bem generoso e familiar, desses que fazem você se lembrar de casa, de onde quer que você venha. Também poderia ser o das empanadas de Ivania Rojas, que está há 10 anos na barraca logo na entrada no terminal pesqueiro. Hoje não há de polvo, a mais famosa, e trocamos por jaiva [tipo de caranguejo grande] e locos [os mariscos mais típicos do Chile]. Experimentamos um mariscal —combinado de frutos do mar crus e cozidos com molho verde de cebola e salsinha— enquanto prepararam a empanada: uma folha grande de massa redonda pré-cortada, uma fatia de queijo, uma colherada de refogado de jaiva, outra de loco, fecha-se apertando a borda com uma rodinha dentada e frita-se em uma caçarola com óleo. O resultado é uma peça de um palmo de comprimento, servida em guardanapos. Um saquinho recolhe o caldo que vaza pelo outro extremo, mas você se suja até os cotovelos; eu comeria outra.

Mulheres com sotaques distantes promovem as cozinhas do terminal. Há mais de 20.000 colombianos em Antofagasta e eles deixam sua marca na cozinha —arepas, bandeja paisa... [o primeiro é um tipo de pão feito de milho branco, e o segundo, o prato típico de Medellín, com arroz, feijão, carne moída, torresmo e banana e ovo fritos]— em pontos de venda da rua Sucre. Também são maioria nos restaurantes do Mercado Central, onde os sabores e temperos peruanos e colombianos se misturam com as cozinhas do sul do Chile. No restaurante de Chico Jaime apresenta-se o essencial da cozinha nacional, com referências a se levar em conta: lapas [tipo de marisco] empanadas e fritas, tortilla de ouriço ou o picante de lapas, um tipo de sopa de alho, densa e forte, salpicada com pedaços de marisco. Algumas ruas para lá, na picada de Tio Jacinto, os picantes se transformam em chupes, caldos tão densos como os primeiros, mas arrematados com queijo gratinado.

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