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Leonardo Padura: ‘Este prêmio é uma vitória da literatura cubana’

Vencedor do Prêmio Princesa das Astúrias, o escritor é autor de uma famosa saga policial

O escritor Leonardo Padura em sua casa na quarta-feira, em Havana.
O escritor Leonardo Padura em sua casa na quarta-feira, em Havana.Alejandro Ernesto (EFE)

Leonardo Padura costuma brincar que é um escritor muito trabalhador, mas de escassa imaginação. O único que faz, assegura, é observar a realidade cubana, olhar o que acontece nas ruas e na vida das pessoas, para depois colocar tudo em folhas de papel que mais tarde costumam se transformar em romances. Não é uma definição ruim para mergulhar na obra desse romancista de Havana nascido em 1955 e criador da famosa saga policial de Mario Conde, um incrédulo e alcoolizado comissário revolucionário cubano com o qual Padura dissecou a Cuba mais obscura e menos oficial —e também a oficial— durante os últimos 25 anos. Padura é atualmente o romancista mais importante e renomado de sua geração, e por isso recebeu na última quarta-feira o Prêmio Princesa das Astúrias de Letras, uma honraria que considera “uma vitória da literatura cubana” mais do que um triunfo pessoal.

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“Sou um escritor cubano, pertenço a uma geração que viveu e sofreu muitas coisas, boas e más, e sinto um grande sentido de pertença ao meu ambiente e ao meu povo em Cuba, por isso considero esse prêmio um reconhecimento a tudo isso”, disse em Havana depois de receber a notícia o autor de O Homem que Amava os Cachorros, um dos seus grandes romances —e dos mais vendidos— no qual sua crítica ao estalinismo tem como pano de fundo o assassinato de Leon Trotsky pelo anarquista espanhol Ramón Mercader, que morreu em Cuba na década de setenta.

“Em um momento como este, diante de um prêmio como este, Mario Conde diria: ‘Vamos desfrutar, meu irmão, porque sofremos bastante e nós merecemos'”, disse um Padura radiante do outro lado da linha depois de afirmar que, se tivesse “o fígado de Mario Conde”, já teria virado a “a primeira garrafa de rum” (eram 7h da manhã em Havana).

Na verdade, a história desta edição do Prêmio Princesa das Astúrias tem a ver com Mario Conde “o bom”, diz ele, para diferenciá-lo do banqueiro espanhol homônimo. Tudo começou há duas décadas, quando uma manhã sem prévio aviso recebeu um telefonema da então editora da Tusquets, Beatriz de Moura, propondo a publicação de seu romance Máscaras, um dos romances policiais da série, na qual pela primeira vez foi abordada de forma realista o mundo marginal e marginalizado dos homossexuais na Cuba revolucionária.

Os cubanos ficaram sabendo das misérias do mundo das drogas de Havana, da prostituição masculina e feminina que era exercida em algumas esquinas, dos meandros dos jogos de cartas, do tráfico de obras de arte e da vida dupla de alguns dirigentes comunistas

Depois daquele telefonema, em 1996, tudo mudou na vida de Padura, literariamente falando. Beatriz de Moura publicou com grande sucesso tetralogia As Quatro Estações (Paisagem de Outono, Passado Perfeito, Ventos de Quaresma e Máscaras), com Mario Conde como protagonista em todos eles, o que fez do romancista do bairro Mantilla o cronista social de Cuba por excelência e um escritor de referência. “Eu cresci como escritor na Tusquets, por isso em grande parte esse prêmio também é da editora”, disse Padura.

Depois da publicação de As Quatro Estações vieram mais romances com Mario Conde, mas também outros livros soberbos como La Novela de Mi Vida (um dos melhores segundo boa parte da crítica), O Homem que Amava os Cachorros ou Hereges. Conde nunca desapareceu, ia e vinha ao acaso, mas desde o início, tanto em Cuba como no resto do mundo, seus leitores entenderam que, para Padura, os crimes eram o de menos. “Para mim, um morto era suficiente para o romance inteiro, com isso já podia contar a história que me interessava”.

Por meio das vidas de Conde e de seus amigos castigados, um deles um paralítico veterano da guerra de Angola, e seguindo o fio de alguns assassinatos que eram apenas pretextos para falar sobre a realidade mais crua e geralmente ausente dos meios de comunicação oficiais, os cubanos ficaram sabendo das misérias do mundo das drogas de Havana, da prostituição masculina e feminina que era exercida em algumas esquinas da cidade, dos meandros dos jogos de cartas, do tráfico de obras de arte e da vida dupla de alguns dirigentes comunistas. Sim, a sociedade cubana foi mudando ao longo dos anos e Mario Conde com ela. Em A Neblina do Passado (Prêmio Hammett de 2006) Conde tinha deixado a polícia e vivia da compra e venda de livros velhos em moeda forte.

Para Padura, os crimes eram o de menos. “Para mim, um morto era suficiente para o romance inteiro, com isso já podia contar a história que me interessava”

O júri do prêmio, anunciado na manhã da última quarta-feira, considera que sua obra é “uma soberba aventura do diálogo e da liberdade”. Como consta na ata, lida pelo presidente, o diretor da Real Academia Espanhola Darío Villanueva, Padura é um autor “enraizado em sua tradição e decididamente contemporâneo, um indagador do culto e do popular, um intelectual independente, de firme temperamento ético”. Para os membros do júri, sua vasta obra percorre todos os gêneros da prosa e põe em evidência um recurso que caracteriza sua vontade literária, o interesse em ouvir as vozes populares e as histórias perdidas dos outros. “A partir da ficção, Padura mostra os desafios e os limites na busca da verdade. Uma exploração impecável da história e dos modos de contá-la”, acrescenta a ata do júri.

O prêmio chegou quando estão sendo gravados em Havana um seriado de televisão e um filme (produzidos pela produtora Tornasol) baseadas em As Quatro Estações. "É uma coincidência feliz, como também é este momento tão especial de Cuba, quando o conflito com os Estados Unidos parece chegar a seu final". O sucesso do escritor cubano em seu país é medido pelo preço alcançado pelas suas obras no mercado negro. Padura está satisfeito. Os livros de Conde chegaram a ser "trocados" por duas latas de leite condensado nos momentos mais duros do chamado Período Especial. "Como você pode imaginar, depois disso não há mais nada".

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