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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A sociedade aberta avança

Equilíbrio do poder está começando a mudar. Aparece uma geração que rejeita uma visão de mundo definida pelos atentados de 11 de setembro de 2001. Já se vislumbra uma política que se afasta do medo em favor da razão

NICOLÁS AZNÁREZ

Hoje faz exatamente dois anos que em um quarto de hotel da cidade de Hong Kong três jornalistas e eu trabalhamos nervosos enquanto esperávamos para comprovar a reação do mundo ante a revelação de que a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) mantinha registros de todas as chamadas telefônicas realizadas nos Estados Unidos. Nos dias seguintes, aqueles jornalistas e outros publicaram documentos que revelavam que Governos democráticos vigiavam as atividades particulares de cidadãos comuns que não haviam feito nada de errado.

Em questão de dias o Governo dos Estados Unidos respondeu apresentando acusações contra mim com base em leis sobre a espionagem da época da Primeira Guerra Mundial. Os jornalistas foram informados por seus advogados de que eles também corriam o risco de ser detidos ou receber uma citação judicial se regressassem aos Estados Unidos. Os políticos se apressaram a condenar nossos esforços, como antiamericanos, e até como traidores.

Descobrimos de novo que o valor de um direito não está no que ele esconde, mas no que ele protege

Em meu foro íntimo, houve momentos em que me preocupei com a possibilidade de que tivéssemos posto em perigo, por nada, as nossas vidas privilegiadas, de que a opinião pública reagiria com indiferença ou adotasse uma atitude de cinismo ante as revelações.

Nunca agradeci o suficiente por ter me enganado tanto.

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Eis que dois anos depois a diferença é profunda. Em apenas um mês, os tribunais norte-americanos declararam ilegal o programa invasivo de rastreamento de chamadas telefônicas da Agência Nacional de Segurança e o Congresso o desautorizou. Depois de uma investigação realizada pela Casa Branca, que concluiu que esse programa nunca havia impedido sequer um único ataque terrorista, até o presidente –que chegou a defender sua razão de ser e criticou a revelação de sua existência– ordenou agora o seu encerramento.

Esse é o poder de uma opinião pública bem informada.

Pôr fim à vigilância maciça de chamadas telefônicas particulares com base na aplicação da Lei Patriótica (Patriot Act) dos Estados Unidos é uma vitória histórica para os direitos de todos os cidadãos, mas é apenas o mais recente fruto de uma mudança na tomada de consciência mundial. Desde 2013, instituições de toda a Europa declararam ilegais leis e operações semelhantes e impuseram novas restrições a futuras atividades. As Nações Unidas proclamaram que a vigilância maciça constituía uma violação inequívoca dos direitos humanos. Na América Latina, os esforços dos cidadãos do Brasil deram lugar ao Marco Civil, a primeira Declaração dos Direitos na Internet em todo o mundo. Reconhecendo o decisivo papel que uma população bem informada desempenha na hora de corrigir os excessos do Governo, o Conselho da Europa pediu a promulgação de novas leis que impeçam a perseguição de quem denuncia irregularidades.

Pôr fim à vigilância maciça das chamadas telefônicas é uma vitória histórica mundial

Indo além das fronteiras da lei, os progressos ocorreram com uma rapidez ainda maior. Os técnicos trabalharam de modo incansável para redesenhar a segurança dos dispositivos que nos rodeiam, bem como a própria linguagem da Internet. Foram detectadas e corrigidas deficiências secretas em infraestrutura crítica que os Governos aproveitaram para facilitar a vigilância maciça. Salvaguardas técnicas básicas como a criptografia –antes considerada esotérica e desnecessária– estão habilitadas agora de modo automático nos produtos de empresas pioneiras como a Apple, o que garante que, mesmo que tenhamos o telefone roubado, nossa vida privada continue sendo privada. Essas mudanças estruturais de caráter tecnológico podem assegurar o acesso à privacidade básica além das fronteiras, protegendo os cidadãos comuns da aprovação arbitrária de leis contra a privacidade, como as que agora se abatem sobre a Rússia.

Embora tenhamos percorrido um longo caminho, o direito à privacidade –fundamento das liberdades consagradas na Carta dos Direitos dos Estados Unidos – continua sob ameaça por parte de outros programas e autoridades. Alguns dos serviços online mais populares do mundo foram recrutados como colaboradores dos programas de vigilância maciça da Agência Nacional de Segurança e as empresas de tecnologia recebem pressões de Governos de todo o mundo para que trabalhem contra seus clientes, em vez de agirem em seu favor. Continuam sendo interceptados milhares e milhares de registros de localização e comunicações de telefones celulares por ordem de outras autoridades, sem levar em conta a culpabilidade ou inocência dos afetados.

Nós ficamos cientes de que nosso Governo enfraquece de modo intencional a segurança fundamental da Internet por “portas traseiras” que transformam as vidas privadas em livros abertos. Ainda continuam sendo interceptados e vigiados metadados que revelam as associações pessoais e os interesses dos usuários comuns da Internet em uma escala sem precedentes na história: enquanto você lê estas linhas, o Governo dos Estados Unidos está tomando nota.

Fora dos Estados Unidos, os encarregados da espionagem da Austrália, Canadá e França aproveitaram tragédias recentes para tentar obter novos poderes invasivos, apesar dos esmagadores indícios de que tais autoridades não teriam impedido de modo algum os ataques. Recentemente, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, refletiu: “Queremos permitir que exista um meio de comunicação entre as pessoas que nem sequer possamos ler?”. Não demorou para que ele mesmo encontrasse a resposta, e proclamasse que “durante tempo demais fomos uma sociedade passivamente tolerante, em que dizíamos a nossos cidadãos: desde que você cumpra a lei, te deixamos em paz”. Ao iniciar o novo milênio, poucos imaginavam que os cidadãos das democracias desenvolvidas não tardariam em ver a necessidade de defender o conceito de sociedade aberta contra seus próprios dirigentes.

Mas o equilíbrio de poder está começando a mudar. Estamos presenciando o aparecimento de uma geração posterior ao terror, uma geração que rejeita uma visão de mundo definida por uma tragédia singular. Pela primeira vez desde os atentados de 11 de setembro de 2001 é possível vislumbrar uma política que se afasta da reação e do medo em favor da resiliência e da razão. Com cada vitória nos tribunais, com cada mudança na lei, estamos demonstrando de novo que o valor de um direito não reside no que ele esconde, mas no que protege.

Edward Snowden foi analista da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos.

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