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Desmitificando Kurt Cobain

Documentário mostra o lado mais íntimo e solitário do líder de Nirvana

Fernando Navarro
Kurt Cobain na adolescência, em cena do documentário ‘Cobain: Montage of heck’.
Kurt Cobain na adolescência, em cena do documentário ‘Cobain: Montage of heck’.

O mito nasceu na manhã de 5 de abril de 1994, depois que aquele cara de 27 anos, cabeleira loira e um sedutor olhar ausente deu um tiro na cabeça e seu cadáver foi encontrado por um eletricista. O suicídio de Kurt Cobain comoveu o mundo do rock, convertendo-se em um rápido e trágico epitáfio para a geração grunge, que, como assinalou no mesmo dia da morte o jornalista da Rolling Stone David Fricke, perdia “seu John Lennon”. Mais de duas décadas depois, o diretor Brett Morgen desmitifica o líder do Nirvana em Cobain: Montage of heck, o primeiro documentário autorizado pela família, que estreou nesta semana na Espanha. “Acredito que o filme põe em dúvida o que as pessoas pensam dele”, diz durante uma entrevista em um hotel da praça Santa Ana, em Madri.

O filme, que foi apresentado na última edição da Berlinale e do Festival Sundance, mostra como nunca antes a intimidade de Kurt Cobain, rastreando inclusive sua infância e adolescência. Tudo isso graças ao fato de que Courtney Love, viúva do cantor, deu a Morgen a chave de um cofre ciosamente fechado durante anos. Um cofre com um tesouro formado por dezenas de filmes super-8 e vídeos em VHS, mais de 4.000 páginas de escritos, ideias e passagens do diário do cantor e 200 horas de áudio de gravações pessoais, muitas delas inéditas. “Ao examinar todo o material, encontrei dois caras: o personagem público e a pessoa. E eu só estava interessado em conhecer a experiência de vida da pessoa”, explica Morgen, que tomou o título do documentário de uma fita cassete gravada por Cobain em 1988, na qual estão versões de canções de Frank Zappa, Black Fag, Beatles ou Cher. “Não há suposições, mas elementos de sua vida. Acredito que o filme está perto de encontrar o verdadeiro Kurt”, afirma.

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Mas quem era o verdadeiro Kurt? Segundo Montage of heck, mais do que deus do grunge perturbado com a fama e rendido à espiral da heroína, havia muitíssimas arestas existenciais que mostravam, nas palavras de Morgen, um “homem terrivelmente complexo”. As primeiras imagens caseiras revelam um menino tímido, que faz desenhos alegres e não se separa de seu violão de brinquedo, mas que acaba se tornando um adolescente marcado pelo rechaço. Um garoto que sofre a separação dos pais e em seguida, ao acabar na casa do pai porque a mãe não se ocupava dele, não pode conviver com os meios-irmãos e vai viver com os avós durante uma longa temporada. Além disso, a mãe tentou frear sua hiperatividade com remédios e no dia em que ele lhe mostrou uma de suas canções ela o aconselhou a se dedicar a outra coisa porque não entendia sua música.

Tracey Marander, seu primeiro amor, explica que Cobain “odiava ser humilhado”. Com animações muito bem-feitas que retratam sua adolescência, tudo isso fica refletido em uma longa gravação do próprio Cobain em que fala de como quis perder a virgindade com “uma garota muito gorda” que frequentava cursos de educação especial. Seus amigos o humilharam quando ficaram sabendo. A mesma voz que cantava Smells like teen spirit conta o que sentiu: “Não podia suportar bancar o ridículo. Droguei-me, embriaguei-me e fui caminhando até a linha do trem, esperando ser destroçado”.

“Ele fazia música para sentir que não estava sozinho”, reconhece sua irmã Kim no documentário. Com sua impecável tensão elétrica e seus modos de inspiração punk, o Nirvana captou o desengano e a frustração existenciais de boa parte dos adolescentes dos anos noventa, perdidos entre a abundância e o consumo de drogas. Krist Novoselic, baixista do Nirvana e amigo de juventude, reconhece que “as drogas eram parte da equação”. E em um dado momento também foi Courtney Love, mais drogada do que ele e que aparece em várias gravações como num vídeo com os dois drogados em plena gravidez dela.

Morgen não a vê como a vilã do filme, embora tampouco a defenda. Simplesmente, como diz, “Cobain batalhava diariamente com a intenção de ser feliz”. E a própria Love reconhece que o músico se sentiu “terrivelmente traído” por ela quando confessou que queria ser infiel a ele. Foi sua primeira tentativa de suicido com uma overdose, em Roma, em março de 1994. Pouco depois, consumou-se em 5 de abril, quando surgiu o mito. E convém enfatizar: em 2006, Cobain chegou a liderar a lista de artistas mortos com mais rendimentos anuais feita pela revista Forbes, à frente inclusive de Elvis Presley, embora O Rei tenha voltado a dominar essa classificação nas edições seguintes, enquanto se fizeram outros documentários como o medonho Quem matou Kurt Cobain?, que lançava intrigas sobre sua morte.

Conta a história que aquele eletricista que encontrou o cadáver não sabia quem era Kurt Cobain. Possivelmente, no fundo, ninguém soubesse. Nem ele mesmo, que deixou os rastros de sua pessoa solitária e excessivamente frágil pulverizados em suas canções, mas também em sua vida, que Cobain: Montage of heck recolhe como nunca foi feito antes.

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