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Paulo Mendes da Rocha | Arquiteto brasileiro

“O que está em debate em São Paulo é a estupidez do automóvel”

Ganhador do Pritzker, o mais importante da arquitetura mundial, Paulo Mendes da Rocha diz que as horas gastas em transporte público pelos paulistanos é uma forma de mantê-los escravizados

Paulo Mendes da Rocha, em seu escritório em São Paulo.
Paulo Mendes da Rocha, em seu escritório em São Paulo.Victor Moriyama

É possível dizer que o arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, de 86 anos, está em um lugar onde poucos do mundo já chegaram. Em 2006, recebeu o prêmio Pritzker, o mais importante da arquitetura mundial. Autor de obras como o Museu Brasileiro da Escultura (MUBE), em São Paulo, o arquiteto pertence a uma geração de modernistas, influenciados por nomes como os franceses Le Corbusier e Lucio Costa, o russo Gregori Warchavchik e os brasileiros Oscar Niemeyer e João Batista Vilanova Artigas.

No centro da cidade, onde mantém um escritório no mesmo endereço há 30 anos, o arquiteto que nasceu em Vitória, no Espírito Santo, recebeu o EL PAÍS, sentado em sua Poltrona Paulistana, projetada em 1957 e que até hoje é vendida em diversos países. Tornou-se, inclusive, peça da coleção permanente do MoMA de Nova York. Atento aos movimentos paulistanos, ele faz uma leitura do momento atual, onde o paulistano disputa espaço com os carros.

Pergunta. São Paulo está sendo palco de movimentos que, mais do que reivindicar por direitos como moradia e trabalho, visam ocupar a cidade. O senhor acha que a briga por espaço está, de fato, mais no centro das questões nesse momento?

Resposta. Eu prefiro dizer que não, até porque, a coisa sempre foi assim. Do ponto de vista da transformação do homem de camponês ao urbano, num período histórico muito amplo – do século 19 e 20 – a questão sempre foi essa. A razão da cidade é podermos conversar. Se você dá chance de as pessoas se encontrarem para falar, eis o movimento. Isso é tão verdade que aqueles que lutam contra isso, a parte que nós chamamos de 'conservadora' da sociedade, sempre esteve muito atenta e agiu com políticas violentíssimas do ponto de vista de grandes empreendimentos. Um exemplo disso em São Paulo foi o de tirar o ensino universitário da cidade, quando historicamente as grandes cidades sempre foram feitas em torno delas.

P. De que forma?

Eu tenho a impressão que só a garagem do Conjunto Nacional na Avenida Paulista, se fosse um reservatório de água, daria para alimentar metade da cidade por quase um mês

R. A Escola Politécnica, que era aqui junto ao Rio Tietê, na Rua Três Rios, foi tirada daqui para fundar essa ‘Cidade Universitária’ [na região do Butantã]. E eis o ato falho, pois não havia condução para ir até lá. Ou seja, a escola estatal grátis que nós tínhamos, uma das melhores inclusive, só era frequentada por quem tivesse automóvel. Então tiraram os estudantes justamente da área central, porque ele era muito politizado e por qualquer coisa ele estava na rua. Esse diálogo, no bar, no botequim, é muito importante. O estudante que vai comer na cantina da escola é uma espécie de idiota diante do estudante que vai ao botequim da esquina e encontra o jornalista, o operário... Ou seja, a grande universidade do ponto de vista do espaço físico é a própria cidade. Tudo isso mostra que nós sempre lidamos com a questão de evitar justamente a mobilização popular.

O automóvel virou uma estupidez muito em evidência

P. Esse movimento de levar a universidade para fora da cidade, é também o que o poder público faz com as camadas mais pobres da população. Para resolver o déficit habitacional da cidade, a Prefeitura vai e constrói habitação popular nas regiões periféricas, longe do centro...

R. Sim, mas nem sempre consegue. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, da noite para o dia verticalizou-se o bairro de Copacabana. A classe mais alta, capaz de comprar aqueles apartamentos, queria morar na praia. Mas aqueles moradores não dispensavam babá para as crianças, copeira, cozinheira, faxineira para os prédios, porteiro. Então, como não interessava à especulação imobiliária os terrenos difíceis das encostas, construíram na horizontal [em frente ao mar] e concederam [os morros para ocupação]. Aquilo virou uma espécie de Casa Grande e Senzala. Então não há novidade. Por exemplo, a questão do passe do ônibus, que foi o que movimentou as últimas manifestações em São Paulo. A ideia do custo da passagem foi só para desencadear uma consciência do atraso. São Paulo deveria ter 250 quilômetros de metrô e tem 50, 60, até hoje. Ontem mesmo os jornais publicaram que São Paulo está vendendo 500 automóveis por dia. Faz muito tempo que isso acontece. Se você imaginar quanto custa ou gasta de água um automóvel por dia, você vê que há muito tempo o consumo de água está crescendo em São Paulo. E não se fez nenhuma obra. Portanto essa estiagem, que é cíclica e esperada, agora tornou-se quase trágica porque surpreendeu uma demanda que há muito tempo não vinha sendo atingida...

P. A questão não é que está chovendo menos? A demanda é que é muito maior?

R. Claro. Todo mundo sabe que a água evapora. O pior reservatório para uma cidade são lagoas a céu aberto. Eu tenho a impressão que só a garagem do Conjunto Nacional na Avenida Paulista, se fosse um reservatório de água, daria para alimentar metade da cidade por quase um mês. É impossível então que não haja uma formação de consciência entre o saber e as possibilidades que o saber oferece.

Um dos mais monumentais espetáculos da questão de consciência urbanística que existe entre nós são as favelas

P. Então, na visão do senhor, essas manifestações são um movimento natural da cidade?

R. É o que se espera de uma cidade: que ela seja falante. Agora, quando o desajuste é muito evidente e violento, como no caso do transporte e do abastecimento de água, é de se esperar mesmo um movimento, que são sadios.

P. Falando então de transporte. O Plano Diretor de São Paulo, aprovado no ano passado, prevê, dentre outras coisas, o estímulo ao uso do transporte público a partir do momento em que reduz a possibilidade de construção de prédios com garagens que sejam próximos aos eixos de um transporte público que...

R. ...que não há.

P. Enquanto isso, a Prefeitura tenta implementar mais corredores de ônibus. O senhor vê que, ao mesmo tempo em que se vendem 500 carros por dia na cidade, o poder público tenta estimular o uso do transporte coletivo? Ou ainda falta muita estrutura para atender a essa demanda?

R. No fundo, o que está em discussão é a estupidez do automóvel. Portanto muita coisa vai se fazer nessa direção de desestimular o transporte individual e estimular o transporte público. Entretanto, também já há consciência que o automóvel virou uma estupidez muito em evidência. O mundo está em guerra por causa do petróleo. E você queima o petróleo para levar uma lataria que pesa 700 quilos e lá dentro tem um cretino de 70 quilos. Alguma coisa está errada.

P. E por que não avançamos em transporte?

O que caracteriza a casa pequena não é a pobreza é a conveniência

R. A luta é contra o conformismo de um lado e o reacionarismo do outro. E esse conservadorismo não tem outra alternativa para a vida, do ponto de vista da economia, se não a exploração do homem pelo homem. Temos que nos livrar dessa chave infame de que só é possível trabalhar explorando o próprio homem. E para explorá-lo, a coisa que tem que fazer é evitar os movimentos. Tanto que o homem não pode ter tempo livre. Então a forma de você manter uma população capaz de ser explorada é ocupá-la absolutamente. Se uma pessoa gasta quatro horas por dia, no mínimo, para ir e voltar do trabalho, isso é o ideal. Ela não pode sair, ir ao teatro, porque não tem onde deixar as crianças. Uma forma de se escravizar é ocupar o tempo inteiro inexoravelmente. E como você consegue fazer isso de modo inexorável? Sendo a única condição de sobrevivência do sujeito. Então, se ele não tem o que comer, ele vive nessa condição de levar horas para chegar ao trabalho, de não poder ter lazer etc. Mas ele vive isso de tal maneira que, qualquer fagulha vira uma explosão.

P. Fala-se muito, há muito tempo em revitalização do centro. Todo governo que começa em São Paulo fala sobre isso, mas ninguém consegue de fato executar. Por que não dá certo?

R. Não dá certo porque a população capaz, que tem mais dinheiro, tem pavor da cidade, porque a cidade, seja como for feita, mal feita ou bem feita, ela é democrática. Para você chegar ao meu escritório, que é na área central, você deve ter passado por muita gente dormindo na calçada. Nesses bairros exclusivamente habitacionais, não tem disso. As pessoas têm segurança, tem polícia vigiando. Portanto, a cidade, por mais mal feita que ela seja, ela é muito mais democrática, sempre mais para todos do que se imagina. E os que podem mais abandonam aquilo que tornou-se efetivamente uma cidade.

P. Mas o poder público não deveria tomar conta então? Aproveitar que há esse abandono do espaço pela elite?

R. Mas é claro que deveria. Por isso que nós estamos na rua reclamando! A consciência sobre isso vai se formando. O absurdo torna-se visível. Por exemplo, nós estamos no quinto andar aqui no meu escritório. Se você olhar pela janela agora, vai ver no que deveria ser um teto-jardim no nível que nós estamos sentados na minha sala, automóveis estacionados [há um estacionamento em frente ao prédio]. É evidente que deve ser um absurdo isso aí. Como essa casa foi transformada em garagem até na cobertura? O que é isso? Por outro lado, a população, desde a menos educada ou menos favorecida, até todos nós, está vendo aí as favelas, as ocupações dos prédios abandonados, como uma possibilidade de as pessoas fazerem suas próprias cidades. Um dos mais monumentais espetáculos da questão de consciência urbanística que existe entre nós são as favelas.

P. Por quê?

A forma de você manter uma população capaz de ser explorada é ocupa-la absolutamente

R. Porque é uma prova de que eu quero morar ali, custe o que custar. É uma visão de consciência de que não há outro lugar melhor do que aquele ali.

P. Por que não há uma política mais enérgica para ocupar os prédios abandonados do centro de São Paulo e tentar assim reduzir o déficit habitacional?

R. Porque é uma defesa exacerbada de uma verdade que interessa a nós todos, que é a liberdade individual, levada a um extremo de uma visão puramente mercantilista e com isso deixar que a parte predadora de compra e venda do mercado, da especulação, possa gozar plenamente [do espaço]. No fundo, são forças políticas. Como nós vivemos? Com o desejo do estabelecimento de repúblicas democráticas, ou seja, quem governa é eleito pelo povo. E esse processo tem que ser aprimorado a ponto de passar a ser efetivamente verdade. Agora você diz: Mas isso será possível? O que você quer? Lute por isso.

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P. Falando então de alguns desses movimentos. O que luta pelo Parque Augusta. É um terreno enorme, particular, em uma área central e esse grupo ocupa para que a área se transforme em um parque. Qual é a viabilidade disso? A Prefeitura diz que não tem dinheiro para comprar o terreno. O movimento tenta resistir... O desejo de transformar essa área em um parque é viável?

R. Aí é uma questão mais técnica. Olhando o [edifício] Copan, por exemplo: ali são 1.000 apartamentos, e tem desde apartamentos de 30 metros até 150 metros. Há uma coisa que me agrada muito em relação inclusive à obra de Niemeyer: há ali apartamentos de um dormitório, três dormitórios... Se você é músico e toca no Teatro Municipal, você pode morar ali sozinho e ir a pé ao teatro. Enfim, o que caracteriza a casa pequena não é a pobreza, é a conveniência. O Edifício Copan é um belo exemplo de uma habitação em uma ideia de cidade para todos.

P. Faltam mais Copans em São Paulo?

R. Sim. E, portanto, o que fazer ali [no Parque Augusta], se é um jardim ou não, é uma outra questão. O que deveria ser feito é tornar aquele terreno disponível. Eu tenho a impressão de que o projeto ideal seria qualquer coisa gênero Copan. Habitação para todo mundo, com escolas para as crianças, etc. O projeto ideal pode não ser um grande parque, mas também com certeza não é construir prédios e dizer que vai preservar um percentual de área verde, essa besteira...

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