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Valdir João Silveira | PASTORAL CARCERÁRIA

“O grande consumidor de cocaína e maconha está nos condomínios”

Coordenador da Pastoral Carcerária, padre prega descriminalização das drogas para barrar o encarceramento em massa de jovens pobres no Brasil

Gil Alessi
Valdir durante visita ao presídio de Redenção (PA).
Valdir durante visita ao presídio de Redenção (PA).Acervo pessoal

Ao contrário da maioria dos padres, Valdir João Silveira, de 62 anos, não cuida de nenhuma paróquia. Coordenador Nacional da Pastoral Carcerária, ele passa seus dias viajando pelo país e visitando alguns dos lugares mais brutais e violentos de nossos tempos: os presídios. "Cristo também foi preso e torturado. Do nascimento à morte, foi tratado como um marginal pelas autoridades da época", afirma o catarinense nascido em Antônio Carlos, que é crítico ferrenho da política de encarceramento vigente no país.

“Quanto mais presídios você constrói, mais aumenta a violência. Há uma propaganda enganosa de que existe um déficit de vagas nas cadeias, e que esse é o problema. Na verdade são os presídios, quase todos comandados por facções criminosas que também atuam nas periferias, que alimentam o ciclo de violência”, diz.

Numa posição controversa dentro da Igreja Católica, a Pastoral defende a descriminalização das drogas como forma de diminuir a violência e acabar com o encarceramento em massa. “Existe uma ênfase muito grande do poder Executivo de investir na lógica da repressão, principalmente nos bairros onde falta a presença do Estado: falta escola, saneamento, saúde e condições dignas de vida. E se responde a isso com a repressão da polícia”, afirma. “A pena existe para o traficante, mas quem define quem é usuário e quem é traficante é a polícia, que acaba tomando essa decisão com base no perfil do suspeito: se foi preso na favela, é traficante. A questão do usuário se resolve com tratamento. É assim em Portugal, na Holanda. O presídio é a garantia do uso da droga, porque entra muita cocaína, crack e maconha lá dentro. Lutamos pela descriminalização, não pela legalização.”

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Valdir argumenta que o perfil da nossa população carcerária é bem definido: são jovens, semialfabetizados e moradores das periferias das grandes cidades. “Se você aprofundar um pouco mais esta análise, vai perceber que a maioria deles foi preso por crimes relacionados à venda de drogas. Mas o grande consumidor de cocaína e maconha não está na periferia. Está no condomínio. Só que lá não existe a repressão policial que existe nos bairros pobres”, afirma.

O padre é categórico ao apontar o Poder Judiciário como sendo o primeiro responsável pela crise no sistema carcerário: “Hoje, em média, 44% dos presos no Brasil são provisórios. Pela lei eles deveriam ter uma primeira audiência com um juiz dentro de no máximo 90 dias após a prisão. Mas, na realidade, muitos ficam três ou quatro anos presos antes disso. Principalmente os pobres, porque o preso rico consegue uma audiência rapidinho. Quando esses provisórios são julgados, 37% são considerados inocentes ou já cumpriram a pena determinada. Se existe a barbárie no sistema prisional, quem mantém isso é o Judiciário brasileiro”, explica.

O não cumprimento desta e de outras leis, segundo Valdir, provocam a superpopulação nos presídios. "Muitos presos que têm direito ao regime semiaberto acabam cumprindo pena de forma integral no fechado, e a grande maioria dos detentos do país (88%) não têm acesso a estudo e 94% não podem trabalhar para reduzir a pena. Tudo isso está previsto na lei, são direitos”, afirma o padre. “Se a legislação fosse aplicada para a população carcerária em geral como foi aplicada para os presos do julgamento do Mensalão, 80% dos detentos já estariam na rua, já teriam direito a trabalhar fora... Lá a lei foi aplicada com rigor. A prisão deve ser a última medida tomada pelas autoridades, e não a primeira”, diz.

Pedrinhas

Para Valdir, o que aconteceu no presídio de Pedrinhas, em São Luís, onde dezenas de presos foram mortos durante rebeliões em 2014, não é um ponto fora da curva. “A crise de Pedrinhas ganhou visibilidade porque a mídia teve acesso ao presídio, às imagens da violência. Mas qual o Estado com mais rebeliões no ano passado? Não foi o Maranhão, foi o Paraná. Lá tiveram em média duas rebeliões por mês. Chegaram a ter dois motins em presídios diferentes na mesma semana. E a mídia não teve acesso a isso. Alguns presídios privados do Amazonas também tiveram um número de mortes absurdo no inicio de 2014. Mas só saiu nos jornais locais ”, diz.

As visitas feitas pelos juízes às unidades, que na teoria deveriam servir para que condições sanitárias mínimas fossem mantidas nos locais e que os direitos dos presos fossem cumpridos, também são alvo de críticas da Pastoral: “Tem juiz que limita a visita à sala do diretor. Outros vão conversar com os detentos dentro das alas acompanhados por policiais armados ou pelos agentes penitenciários. Aí o preso fica inibido para criticar, porque sabe que vai correr um risco se denunciar as violências que sofre nas mãos de quem está escoltando o juiz. Aí você pega o relatório da visita para ler e diz que está tudo lindo, o que é uma mentira”, afirma.

Apesar de décadas mediando conflitos — e potencialmente impedindo massacres —, Valdir, não julga ter colecionado vitórias ao longo deste trabalho: “Nesse campo não temos vitórias, só sofrimento e dor. Nossa luta contra o encarceramento é constante. É um sistema de violência, vingança e ódio. Nossa esperança é a Justiça restaurativa, que mira o futuro e concilia a vítima com o agressor. Nosso sistema prisional é um pecado, é violento com toda sociedade”.

Questionado sobre o que falta para o preso, Valdir reflete por um instante e responde: “Faltou tudo antes da prisão. O encarceramento é a resposta violenta para quem não teve as condições mínimas de infância, adolescência e juventude. O Estado falhou, foi ausente, responsável por um déficit social, econômico e educacional na vida de muita gente. E a resposta que ele oferece para isso é repressão.”

A última barreira entre os presos e a tropa de choque

No dia 18 de março de 2005, o padre Valdir estava em seu escritório na sede estadual da Pastoral Carcerária, na rua da Consolação, quando recebeu a notícia de que o Centro de Detenção I, de Pinheiros,  havia virado - entrado em rebelião, no jargão dos presídios. Familiares dos presos e dos agentes queriam sua presença no local para evitar uma tragédia – as lembranças do Massacre do Carandiru, quando policiais mataram 111 presos na Casa de Detenção em 1991, ainda estão vivas na lembrança de todos.

Desde 1990 na Pastoral, o padre havia construído uma reputação de mediador de conflitos carcerários. Quando chegou ao CDP momentos depois, encontrou na entrada principal da unidade uma barricada com entulho feita pelos presos para barrar o acesso da polícia. Para entrar, o pároco subiu por uma escada na lateral do prédio que leva ao telhado, a uns 8 metros de altura do chão. Lá um grupo de presos fez uma “escada humana” para que ele pudesse descer,  passando por um buraco aberto nas telhas.

Era uma sexta-feira ensolarada, e apesar da energia elétrica ter sido cortada para forçar a rendição dos detentos, o interior do CDP I estava claro. Assim que desceu dentro do pavilhão, Valdir pediu para ver os mortos e feridos, e deu um ultimato: “Eu só me disponho a intermediar a negociação se vocês pararem com a violência aqui dentro”. Os presos do seguro (área reservada para estupradores e assassinos de crianças) estavam amarrados no telhado e em algumas celas, e seriam os próximos a morrer, disseram os preso.

Como as alas estavam completamente destruídas, o padre Valdir optou por realizar a assembleia com os cerca de 900 presos amotinados no pátio interno do centro. Dois agentes penitenciários já haviam sido mortos a facadas e tiros desde que rebelião havia começado, durante a madrugada, após uma tentativa frustrada de fuga. Ao menos sete são reféns dos rebeldes. O pároco era acompanhado por dois detentos com revólveres e um com granada, mas não temia por sua vida: todos lá dentro sabiam que o religioso era a única barreira entre eles e a tropa de choque da Polícia Militar, que aguardava do lado de fora.

Após alguns minutos de assembleia, os presos amotinados chegam a um consenso quanto às exigências: “Não queremos que a polícia entre aqui e nos mate como fizeram no Carandiru, e exigimos a transferência de presos para outras unidade devido à superlotação”. O padre  leva as reivindicações para o juiz, do lado de fora do presídio. Ouve de volta que qualquer negociação está condicionada à entrega das armas e libertação dos reféns. É usando a mesma “escada humana” que Valdir volta ao presídio para encerrar a negociação. É o fim da rebelião.

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