Relatório mostra que a tortura ainda é um método de investigação no Brasil
Documento inédito revela que torturadores agem nas polícias para obtenção de provas Lei prevê que pais também podem ser julgados pelo crime ao agredirem seus filhos
Parado por dois policiais militares na frente de sua casa, em São Simão (SP), um motorista de 32 anos, que tinha ingerido bebida alcoólica e era suspeito de participar de uma corrida clandestina, não apresenta os documentos solicitados pelos agentes de segurança e age de maneira rude, xingando-os. Ao invés de receber voz de prisão, ele leva um jato de spray de pimenta nos olhos, é algemado e conduzido dentro da viatura para uma rua escura. Nela, é espancado e desmaia. O motorista passa de suspeito de dois crimes à vítima de uma grave agressão. Sofre fratura em um braço, tem traumatismo craniano e perde parte da audição.
Torturado, esse motorista passa a fazer parte de um pequeno grupo de vítimas desse delito que tem seus casos julgados. Um levantamento feito por um coletivo de cinco organizações não governamentais mostra que no período de cinco anos (2005 a 2010) apenas 455 casos, envolvendo 752 réus, foram julgados pelos 27 Tribunais de Justiça estaduais, que são os órgãos de segunda instância no país. “Quando começamos a pesquisa não imaginávamos que teríamos tão poucos processos”, afirmou uma das coordenadoras do estudo, a advogada Vivian Calderoni, da Conectas. Apesar da frequente ocorrência de tortura, apenas uma parcela dos casos é efetivamente comunicada à polícia ou a outra instância formal de controle.
A pesquisa mostra que pouco mais de seis em cada dez casos de tortura foram cometidos por agentes públicos, principalmente policiais, agentes penitenciários e monitores de unidades de internação de jovens. Uma das conclusões do levantamento é que os agentes públicos torturam para obter a confissão de um crime ou informações para desvendar esse delito. “A tortura ainda é um instrumento de investigação policial, o que é abominável”, ressalta Calderoni.
Tortura em casa
Outros 37% dos crimes de tortura analisados pelos pesquisadores foram cometidos por agentes privados, geralmente familiares das vítimas. A razão desses parentes estarem no mesmo grupo que os policiais torturadores é que desde 1997 a lei que tipificou a tortura como crime não a diferenciou claramente da lesão corporal. Por isso, um pai que bate em seu filho pode se tornar um torturador.
Um dos casos que ilustra essa situação ocorreu em Porto Alegre (RS) em 2003 e foi julgado no Tribunal em 2010. Uma menina de três anos foi agredida fisicamente por sua mãe e por seu padrasto. A criança levou seguidos tapas e socos na face, chutes na barriga, cintadas nas costas, chineladas nas pernas e obrigada a se ajoelhar no sal grosso com o rosto encostado na parede. A sessão de espancamento durou mais de três horas. Os exames periciais mostraram que a garota tem hematomas por todo o corpo, costelas quebradas, fraturas nas pernas e sofre danos neurológicos. Ela correu sério risco de morrer e os adultos responsáveis por ela foram condenados pelo crime de tortura.
Enquanto os agentes públicos torturam para obter dados, os agentes privados o fazem como uma maneira de castigar a outra pessoa.
Diferenças
Uma das dificuldades de classificar uma agressão como tortura é que a lei 9.455/97, que a definiu como crime, deixa margens para distintas interpretações. Seu principal argumento no caso de agressão cita que a violência ou grave ameaça tem de ser seguida de intenso sofrimento físico ou mental. Para alguns juízes, um braço quebrado pode se enquadrar nesses casos, para outros não. Diz o estudo: “se um caso de violência envolvendo pais e filhos chegar à 2ª Câmara do TJ de Minas Gerais como tortura, é bem provável que seja desclassificado para outro crime. Porém, se o mesmo caso chegar ao TJ de São Paulo, Espírito Santo ou Rio de Janeiro, é bem provável que os pais sejam condenados pelo crime de tortura”.
Os detalhes da pesquisa
Perfil dos acusados
- 61% agentes públicos (policiais, agentes penitenciários...)
- 37% agentes privados
- 2% não identificados no processos
Local onde ocorreu a tortura
- 33% residências
- 31% Prisão, delegacia, unidade de internação
Decisões na primeira instância
- 78% condenados
- 17% absolvidos
- 5% desclassificados
Conversão das decisões na segunda instância
- 19% dos agentes públicos que foram condenados na primeira instância conseguiram ser absolvidos
- 10% dos agentes privados foram condenados na primeira instância foram absolvidos
Fonte: Estudo “Julgando a tortura”
Se não é tortura, o caso pode ser enquadrado como lesão corporal. A pena deste crime é mais branda, vai de três meses a oito anos de reclusão e é possível pagar fiança. Se o ato resultar em morte, pode chegar a 12 anos de reclusão. Enquanto que a tortura é inafiançável, não dá direito a anistia e pode render até dez anos de cadeia no caso de lesão grave e de 16 anos em caso de morte.
Outra dificuldade em se configurar os casos de tortura é a falta de provas. Muitos casos de tortura ocorrem em unidades prisionais e durante abordagens policiais no Brasil e dificilmente tem testemunhas, já que os possíveis denunciantes podem ser vítimas desses agressores quando denunciem. Além disso, a perícia é feita por outros agentes do Estado, os policiais técnico-científicos. “São os pares produzindo provas contra seus pares”, ressalta Calderoni.
Talvez por isso, a possibilidade de um policial ser absolvido em segunda instância é maior do que a de um cidadão comum. Ao menos 19% dos agentes públicos que recorreram da decisão que os condenaram conseguiram ser inocentados nos Tribunais de Justiça. O índice envolvendo o agente privado chegou a 10%. Os dados do levantamento serão divulgados na em São Paulo tarde desta quinta-feira em um debate internacional promovido por Conectas, Núcleo do Estudo da Violência da USP, Pastoral Carcerária, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Associação dos Cristãos para Abolição da Tortura.
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