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O cientista que burlou a Stasi

O bioquímico alemão oriental Günter Fischer conta como publicou na ‘Nature’a descoberta sobre a dobradura de proteínas, numa época em que isso era proibido em seu país

Günter Fischer em 1989, na Universidade de Halle.
Günter Fischer em 1989, na Universidade de Halle.

Hoje em dia, um pré-requisito para ser cientista é dominar a língua inglesa. E um alemão falar esse idioma parece ser o mais natural. Mas quando se trata de um cientista da República Democrática Alemã (RDA, a extinta Alemanha comunista) que viveu a maior parte de sua vida no outro lado da Cortina de Ferro, supõe-se que ele, assim como seus outros colegas da Europa Oriental, precisasse acrescentar um desafio extra ao esforço de pesquisador: o de aprender uma língua que, em seu tempo e em seu país, era o idioma do inimigo, mas também o da ciência mundial.

Talvez por isso o bioquímico Günter Fischer (Altenburg, Turíngia, 1943) rebusque com tranquilidade suas palavras do outro lado da linha telefônica, em sua sala na Unidade de Enzimologia de Dobradura de Proteínas do Instituto Max Planck, que dirigiu até sua aposentadoria em 2011. Agora, seu afastamento, mais teórico do que real, permite que o pesquisador possa desfrutar de certo sossego. “Continuo trabalhando; por sorte, no Max Planck deixam você fazer isso depois dos 65 anos, mas de maneira mais relaxada”, confessou o cientista, que na década de oitenta descobriu as primeiras enzimas envolvidas no processo de dobradura das proteínas.

A reunificação alemã foi muito positiva para a ciência

Nascido em plena guerra mundial, antes da queda do nazismo, Fischer teve de viver de totalitarismo em totalitarismo, da suástica ao compasso, o martelo e as espigas de centeio. “Depois da guerra, os primeiros 15 anos foram muito duros, com restrições na distribuição de alimentos”, lembrou. O jovem Fischer se mudou para Halle, a cerca de 90 quilômetros de Altenburg, para estudar Química na Universidade Martinho Lutero, em Halle-Wittenberg, uma das mais antigas da Alemanha. Esta cidade da Saxônia-Anhalt abriga também uma instituição que se gaba de ser a sociedade científica mais antiga do mundo: a Leopoldina, atual Academia Nacional de Ciências da Alemanha.

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Uma ilha de tolerância

A Leopoldina foi crucial na carreira científica de Fischer desde que ele era um jovem universitário, na década de 1960. Em uma ocasião, cinco prêmios Nobel visitaram a academia e pediram para almoçar com um grupo de jovens alunos. Fischer conseguiu ser um deles. “Comemos em um restaurante de Halle, cinco prêmios Nobel e uns 10 estudantes, e aquilo foi genial; foi determinante para minha vida científica”, afirmou.

Mas a Leopoldina era uma estranha ilha de tolerância que gozava de um privilégio especial. Essa academia, da qual o regime de Adolf Hitler tinha expulsado cientistas judeus — incluindo um tal Albert Einstein —, ficou na Alemanha Oriental depois da guerra, mas se manteve como uma instituição livre e resistiu às pressões de nacionalização do Governo. “Era a última organização comum do Leste e do Oeste”, contou Fischer. “O reitor ficava em Halle, o vice-reitor em Göttingen [Alemanha Ocidental], e seus membros eram de todo o mundo, portanto tinham o privilégio único de convidar cientistas ocidentais para fazer conferências, o que me deu a oportunidade de conhecê-los e falar com eles.”

Cerca de 30% dos cientistas contratados eram informantes da Stasi, segundo Fischer

A situação era muito diferente na Universidade onde Fischer se doutorou, encontrando um obstáculo que não tinha nada a ver com suas aptidões como cientista. “Era muito difícil fazer um doutorado sem ser membro do Partido Comunista. Queriam me alistar, mas me neguei.” Por sorte, o jovem contou com a ajuda de um catedrático de bioquímica que lhe abriu as portas. Em 1971, já com seu doutorado e um cargo de assistente no Instituto de Bioquímica da Universidade, Fischer se encarregava de pesquisar, mas a pressão política não era o único empecilho. “Nos anos setenta a situação não era tão ruim, mas na década de oitenta piorou pela falta de recursos. Não tínhamos como conseguir materiais dos países ocidentais nem consertar equipamentos.” Com tal carência de recursos, o que um bioquímico podia fazer não era muito, salvo uma coisa: “pensar”. “Ninguém me perguntava a que eu me dedicava, portanto, tinha tempo para pensar.”

Os pensamentos de Fischer se dirigiram ao campo da dobradura das proteínas, no qual, naquela época, reinava o chamado Dogma de Anfinsen, estabelecido pelo bioquímico norte-americano Christian B. Anfinsen, ganhador do prêmio Nobel. O princípio estabelecia que a dobradura de uma proteína em sua conformação espacial era algo exclusivamente determinado pela sequência de aminoácidos, e que, portanto, era um processo espontâneo que não exigia nenhuma ajuda externa. Fischer colocou isso em dúvida. “Projetei experimentos muito simples com o pouco que tinha, e os resultados sugeriam que poderia haver uma biocatálise”. Ou seja, um fator celular que facilitaria e aceleraria o processo de dobradura: uma enzima dobradora, ou foldase (do inglês fold, dobrar). “Ninguém havia tentado isso, e em 1984 eu a encontrei”, disse o pesquisador.

Colaboração clandestina

Com sua chamativa descoberta, Fischer tentou fazer o que todos os cientistas tentam, ou seja, publicar o trabalho em uma revista internacional de primeira linha. Mas aquilo era a República Democrática Alemã. “Era proibido publicar resultados em revistas internacionais como Nature ou European Journal of Biochemistry, e ainda pior se fossem revistas da Alemanha Ocidental”, recorda. Na época, todo cientista que desejasse publicar precisava solicitar aprovação do Departamento de Relações Internacionais, ligado à própria Universidade, mas subordinado à Stasi, o serviço de inteligência. “Eles podiam conceder ou não a permissão, mas não eram obrigados a lhe informar as razões disso.” Esse departamento se encarregava também de filtrar a correspondência. “Se você escrevesse a um cientista da Alemanha Ocidental, devia entregar a carta a eles, que a enviavam ou não, mas nunca lhe informavam. Se não recebesse resposta, era possível que a ela existisse, mas não tivesse sido enviada a você, ou que a sua carta nunca tivesse sido remetida.” A pressão política era intensa, e além disso havia professores que atuavam como informantes ou “espiões internos”. E era sabido que Fischer não simpatizava com o regime.

Nos anos setenta a situação não era tão ruim, mas na década de oitenta piorou pela falta de recursos. Não tínhamos como conseguir materiais nem consertar equipamentos

Naturalmente, sua solicitação de publicar no exterior foi rejeitada, razão pela qual o cientista precisou se conformar em divulgar seus importantes resultados numa revista da Alemanha Oriental e no idioma de seu país. “Ninguém leu, só o pessoal da Leopoldina.” Por sorte, entre essas pessoas estava um pesquisador muito influente no campo da dobradura de proteínas, Rainer Jaenicke, de Regensburg (Alemanha Ocidental). Jaenicke o colocou em contato com um colaborador seu, Franz Schmid, de Bayreuth, e esse encontro foi providencial. Em 1985, Fischer conseguiu convidar Schmid para a sua universidade, e assim teve início uma colaboração clandestina que culminaria com o envio de um estudo à Nature, algo que Schmid podia fazer a partir de Bayreuth. “Não pedi permissão; assumi um grande risco pessoal”, avalia Fischer. Mas valeu a pena: em 1987, a revista britânica publicava o trabalho dos pesquisadores.

Em relação aos motivos pelos quais o Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Halle não percebeu a publicação, Fischer tem apenas especulações a fazer: “Provavelmente nessa época eles tinham outros problemas, e de todo modo era impensável que alguém pudesse ser tão teimoso e assumir esse risco”. Talvez, diz o bioquímico, sua publicação tenha passado despercebida em parte porque, quando a revista saiu, ele havia sido enviado a Berlim para participar de um projeto da indústria farmacêutica. Quanto ao seu supervisor em Halle, que havia lhe aberto as portas para a pesquisa, Fischer ri ao recordar sua resposta ao ser informado da intenção do cientista de publicar na Nature: “Ele me disse: ‘Bom, você me diz que vai fazer isso, mas eu não ouvi nada”.

“O muro caiu!”

Fischer e Schmid repetiram a publicação na Nature dois anos depois, em 1989, e nessa ocasião o risco foi ainda maior, devido a um detalhe sem nenhuma importância científica, mas de grande relevância política na Alemanha Oriental da época: “A União Soviética tentava fazer de Berlim uma unidade política à parte; diziam que Berlim Ocidental não pertencia à República Federal da Alemanha. Então enviamos a informação sobre os autores à Nature, detalhando que uma colaboradora, Brigitte Wiettmann-Liebold, trabalhava em Berlim Ocidental. Mas na redação da Nature escreveram: Berlim, República Federal da Alemanha”. Aquilo podia ser interpretado pelas autoridades alemãs orientais como uma provocação. “Era muito perigoso para mim, porque era contrário à visão política oficial”, explica Fischer.

Depois de dar uma palestra, alguém entrou no restaurante e gritou: “O muro caiu!”

Por sorte, naquele mesmo ano ocorreu algo que o próprio cientista admite que jamais imaginou que chegaria a acontecer. Assim narra Fischer: “Em outubro de 1989 consegui uma permissão para viajar com Schmid a Ulm, na Alemanha Ocidental, para dar uma conferência. Era 9 de novembro. Depois do evento, estávamos em um restaurante quando de repente alguém entrou e gritou: ‘O muro caiu!’”.

“Nunca pensei em fugir da Alemanha Oriental”, rememora Fischer. “Tinha meus pais, minha mulher e meus filhos. Era impossível planejar uma fuga.” Mas a partir daquele 9 de novembro tudo começou a mudar. “A reunificação alemã foi muito bem-sucedida para a ciência”, reflete o bioquímico. “No campo científico, não sofremos os problemas que o processo acarretou para a indústria e a sociedade. Os cientistas, também os do leste, puderam trabalhar, comprar materiais, equipamentos... Exceto, claro, os espiões da Stasi, que foram despedidos. Eram 30% do total.” Em 1992, Fischer se transferiu para a Sociedade Max Planck, o equivalente alemão ao CNPq brasileiro. Hoje aposentado, recorda com emoção aqueles tempos difíceis. “Cheguei a aceitar que não poderia fazer carreira. Haviam me dito diretamente: você pode trabalhar, trabalhar e trabalhar, mas se não for membro do Partido [Comunista] jamais o faremos ascender. E achei que sempre seria assim.” Lutou durante décadas opondo a razão à injustiça, mas não se gaba dos seus méritos: “Às vezes a vida nos surpreende com grandes oportunidades de mudança que você não espera. Fui muito afortunado”.

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