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‘Mundo neurótico’ de Guadalupe Nettel é premiado na Espanha

'Después del invierno' é o novo livro da autora à frente de uma geração literária no México

Carles Geli
Guadalupe Nettel durante entrevista em 2013.
Guadalupe Nettel durante entrevista em 2013.Samuel Sanchez

Guadalupe Nettel (Cidade do México, 1973), à frente da nova geração literária de seu país, acredita que, visto de perto, ninguém é normal. “Gosto de enfocar o que o as pessoas acham anormal, o que escondem, o que pensam que são defeitos. Gosto de descrever suas manias e obsessões, com certeza para não me sentir assim tão só”. Por isso, talvez, a melhor maneira de definir sua última obra, Después del invierno, seja ressaltar que é “um encontro chocante entre dois neuróticos”, com a qual obteve o 32º prêmio Herralde de romance, e os respectivos 18.000 euros (56.300 reais) dados pela editora Anagrama.

“Não entendo porque não sou do Institutum Pataphysicum Granatensis”, brinca Nettel, em Barcelona, em referência ao currículo do espanhol Manuel Moyano (Córdoba, 1963), que foi finalista do prêmio ao lado dela, com o romance El imperio de Yegorov. Trata-se de um pesadelo distópico que tem início com a doença parasitária que uma estudante de antropologia contrai em Papua Nova Guiné e que acaba desembocando em um thriller político repleto de reflexões sobre a fugacidade da existência humana.

Já em Después del invierno, Claudio, um cubano que vive em Nova York e trabalha em uma editora (“é um personagem obsessivo, que executa rituais inexoravelmente”), e Cecilia, uma estudante mexicana que mora em Paris (Nettel viveu mais de cinco anos na capital francesa e quase 15 na França) vão deixando transpassar suas neuroses e fobias, que acabam se cruzando em Paris. “Na vida, encontramos outra pessoa e, às vezes, isso nos transforma totalmente”, e é nisso que o romance de Nettel se baseia. Ou seja, em perfeita sintonia com sua narrativa anterior, entre as quais se destacam os romances El huésped (com o qual já foi finalista do prêmio em 2005) e, o mais autobiográfico, O corpo em que nasci (2011; publicado no Brasil pela Rocco). Por isso, não é de se estranhar que os dois narradores-personagens sejam emigrantes e sintam um incômodo existencial: “Estão em um país distante, não pertencem ao lugar em que talvez alguém queira estar ou ser”. E também não é surpresa a presença da morte, já que os personagens são fascinados por cemitérios, assim como a autora. “Sim, tenho certa fixação por eles (cemitérios), talvez porque gostaria de resgatar os mortos que sempre nos acompanham e, de sua maneira, nos recuperam”.

É inevitável encontrar na obra a biografia de Nettel, marcada, como ela mesma reconheceu, por seus problemas de visão reduzida, que moldaram sua infância. “Não é tão autobiográfica como O corpo em que nasci, mas traz pedaços das minhas experiências”, admitiu, para fazer jus ao fato de sempre basear suas obras em “histórias reais e, a partir delas, explorar outras possibilidades, de como as coisas podem piorar”. A escritora mexicana toma para si a imagem construída por seu compatriota Juan Villoro de que a hiena deveria ser a deusa da escrita. “Eu me alimento de pedaços palpitantes de vidas de outros, e este também é um romance de rapina: mostra fragmentos das vidas de outras pessoas, é uma colagem de várias existências”. A música de Nick Drake (favorita da protagonista e da sua criadora), de Miles Davis e de Keith Jarrett não mitiga em quase nada essas inquietantes obsessões, nesse que é o seu mais longo romance até agora. Seguramente as reforça.

Nettel (cujo romance será publicado, como o finalista em 19 de novembro) é a oitava autora, dos últimos 10 ganhadores, que veio da América Latina e a quinta mexicana a obter o Herralde (depois de Pitol, Villoro, Sada e Enrigue). O que acontece no México com essa eclosão de escritores? “Com a literatura não sei, mas na vida cotidiana é desastroso; o México é hoje minha ideia do inferno: nos últimos oito anos desapareceram 30.000 pessoas, e a cada dia não se faz nada além de encontrar fossas e fossas cheias de cadáveres torturados ou carbonizados. Essa violência já se estendeu tanto que já não se declara luto nem na capital do México. No meu bairro de Coyoacán, até agora tranquilo, houve dois assassinatos na semana passada”.

Essa extensão da violência também se dá nos feminicídios, que transcenderam o cenário da infelizmente célebre Ciudad Juárez. “Durante o percurso, mais ou menos estabelecido, dos imigrantes que tentam atravessar a fronteira para ir aos EUA, com seu famoso trem apelidado 'O animal', se for mulher tem 99% de chances de ser, no mínimo, estuprada”, afirmou Nettel, que recomenda o documentário de Marcela Zamora sobre o tema, chamado María en tierra de nadie. A violência na obra de Nettel é mais branda e está restrita ao âmbito familiar, mas não é de se estranhar a presença deste elemento, nem da obscuridade e da anormalidade; no fundo, tudo isso é, infelizmente, o mais normal.

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