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A saída francesa para vencer a crise

A França resiste a fazer reformas e opta por um ajuste médio, limitado e sem austeridade

Carlos Yárnoz
Manuel Valls, primeiro-ministro da França.
Manuel Valls, primeiro-ministro da França.REMY DE LA MAUVINIERE (AP)

A França tem seu próprio caminho para sair da crise. Colocou em marcha seu programa de ajustes e reformas, mas, apesar das contínuas advertências de Bruxelas e Berlim, recusa-se a diminuir seu déficit ao ritmo que foi pedido e evitar que os cortes afetem com profundidade seu mimado modelo social. Ao contrário dos outros países europeus, a França não prevê uma reforma trabalhista, nem cortes nos salários, nem facilidades para demitir, nem uma profunda revisão das pensões, nem reduções dos subsídios para o salário mínimo. Nada que possa frear ainda mais o crescimento, argumenta Paris. É a via francesa, a do ajuste medido, limitado, sem austeridade.

“Reformar não é romper nosso modelo social, mas reafirmar nossas prioridades rechaçando a austeridade”, resume o primeiro-ministro, o socialista Manuel Valls. Rigor, sim, afirma o ministro de Finanças, Michel Sapin, mas desde que não seja um freio ao crescimento. “É incontestável que a França está optando por um modelo próprio em comparação com a Espanha, por exemplo”, comenta ao EL PAÍS Guy Groux, professor e pesquisador da Sciences Po.

“Nosso modelo resistiu melhor que o dos outros”, declara por telefone Catherine Mathieu, pesquisadora do departamento de Análise e Prevenção do Observatório Francês de Conjunturas Econômicas (OFCE). “E esse modelo continuará sendo diferente. O problema é o crescimento. Quando voltarmos a crescer, o déficit e a dívida também serão solucionados. Esse é o caminho francês, não o que tomou a Espanha ou a Grécia”, acrescenta.

A França continua sendo a quinta potência mundial, a segunda da zona do euro e, até hoje, realmente, superou a crise com menos feridas que a maioria dos vizinhos. Mas suas bases não estão sólidas. Os problemas da França são a ausência de crescimento, o desemprego e a perda de competitividade de suas empresas. Há consenso nessa trilogia. Não na avaliação da situação.

“A recuperação chegou, embora seja débil”, assegurou em julho o presidente François Hollande. Para Pierre Gattaz, o presidente dos empresários franceses, “a situação econômica na França é catastrófica”. “Se fosse uma empresa, estaria a ponto de falir”, dizia a direção patronal em agosto.

Para que a França ganhe em crescimento, competitividade e emprego, é preciso fazer reformas. Pessimistas e otimistas, Governo e oposição, empresas e sindicatos... estão de acordo. Uma década depois que Alemanha, e anos atrás da Espanha, Grécia, Portugal, Reino Unido e Irlanda, o Executivo francês começou a fazer suas reformas. A premissa: não à austeridade. Está em linha com o Nobel de economia de 2008, Paul Krugman, que escrevia em agosto: “A França acha que está sofrendo de uma doença que não tem e se arrisca com um tratamento ruim.”

Em grandes cifras, as reformas preveem corte de 50 bilhões de euros (153 bilhões de reais) nos gastos públicos daqui até 2017. Também 21 bilhões em 2015 e 14,5 bilhões em cada exercício de 2016 e 2017. Desses 50 bilhões, 20 bilhões serão cortes nos setores sociais (saúde, pensões, ajuda a famílias), 19 bilhões do funcionamento do Estado central e 11 bilhões de prefeituras, departamentos e regiões.

O projeto de orçamento para 2015 já recebe um primeiro corte de 21 bilhões de euros. Dessa cifra, 9,6 bilhões corresponde ao gasto social, um setor sempre muito bem tratado na França, mas sem afetar o quadro de funcionários, os salários, nem os serviços públicos. Na saúde, por exemplo, significará uma redução das taxas que os médicos recebem do Estado, a diminuição dos preços pagos aos laboratórios farmacêuticos ou a eliminação de serviços duplicados. Nem o fechamento de centros de saúde ou a redução de pessoal.

As reformas incluem a abertura à concorrência de 37 profissões “regulamentadas”, protegidas por uma confusão de normas e por tarifas que superam amplamente a média europeia. De tabeliães e farmacêuticos, passando por procuradores ou escritórios de advocacia, trata-se das profissões mais bem remuneradas no país. O Governo anunciou no verão que os consumidores poderão economizar ao redor de seis bilhões de euros. A abertura de comércios nos domingos e feriados é outra medida para ativar a economia.

O pacote reformista, contido no chamado Pacto de Responsabilidade, prevê para as empresas cortes de 41 bilhões em impostos e contribuições sociais em três anos. Para que melhorem a competitividade e criem emprego. Os lares se beneficiarão com cinco bilhões em diminuição de impostos e contribuições sociais dos assalariados. E de uns cortes fiscais às pessoas com rendas mais baixas que no próximo ano beneficiarão nove milhões de contribuintes.

A reforma trabalhista é a grande ausente em comparação com o ocorrido em outros países europeus. Valls prometeu que não tocará na lei de 35 horas semanais. Tampouco se contemplam cortes nos salários. Os empresários acham que eles subirão ao redor de 2% em 2015. Tampouco está previsto um aumento do IVA, cuja tarifa normal está hoje em 20%, um valor intermediário dentro da UE.

Apesar de ser moderado, as resistências ao programa de Governo surgem nas ruas e no Parlamento. É difícil que haja um semana sem manifestações, de ferroviários a tabeliães, passando por funcionários da área de espetáculos o pilotos da Air France. “Os franceses querem reformas, mas desde que não afetem seu setor”, comentam fontes do Ministério da Economia.

Começa a grande batalha de Bruxelas

A França não cumprirá, pela segunda vez consecutiva nesta crise, o compromisso para posicionar seu déficit abaixo de 3% e se arrisca a sofrer um procedimento da Comissão Europeia que, no pior dos casos, pode concluir em uma sanção equivalente a 0,2% de seu PIB. É o que prevê o Pacto de Estabilidade. A disputa entre os dois lados, com a Alemanha como árbitro parcial, ameaça se transformar na maior batalha da história da UE.

Paris já conseguiu uma prorrogação em 2013. Uma segunda concluirá em dezembro de 2015. De acordo com o compromisso, o déficit de 4,3% de 2013 teria que ter diminuído este ano para 3,8% e, no ano que vem, para 3%. O orçamento pra 2015 indica algo muito diferente: este ano o desequilíbrio aumentará para 4,4% – os gastos superarão em 87 bilhões os ingressos – e no ano que vem só diminuirá 0,1%. Antes de 2017, no mínimo, não chegará aos 3% exigido.

O ministro de Finanças, Michel Sapin, opina que estes números não podem ser aplicados cegamente frente a um crescimento tão fraco. Nem Bruxelas, nem Berlim vão aceitar isso tão facilmente. Por seu lado, o Governo francês vai enfrentar um fogo cruzado. De um lado a comissão, que considera “insuficiente”, e do outro seu Parlamento, que em novembro debate o projeto sem o apoio de uma maioria absoluta perdida porque três dezenas de deputados socialistas criticam os cortes.

Outro fato atrapalha mais o campo de jogo. O novo comissário de Assuntos Econômicos, chave nesta disputa, é o francês Pierre Moscovici, acusado de não ter dado um jeito nas contas públicas como Ministro da Economia e Finanças até março deste ano.

No dia 30 de setembro, milhares de farmacêuticos (oito de cada 10) fecharam seus locais e se uniram aos protestos que em dias anteriores tinham protagonizado advogados de tribunais de comércio, procurados e tabeliães. Todos eles, com ingressos mensais médios que vão dos 7.600 aos 30.000 euros, se sentiram ameaçados. Valls voltou a lançar a mensagem habitual a eles: “As reformas não vão parar. A França já tem muitos bloqueios em sua economia.”

Na Assembleia Nacional, a política econômica provocou uma ruptura nas fileiras socialistas. Mais de 30 deputados do PS (são 289 de 577) se abstiveram nas votações das reformas e, portanto, o Governo não conta mais com a maioria absoluta. No final de setembro, a esquerda perdeu o controle do Senado, agora nas mãos da direita. A Câmara Alta tem competências limitadas, principalmente no orçamento do Estado, mas fará todo o possível para boicotar e atrasar as medidas.

Enquanto isso, os empresários veem com bons olhos o pacote reformista, mas reclamam diariamente que se passe das palavras aos fatos. Gattaz, o principal líder patronal, repete estas semanas: “Já levaram o afogado à praia, mas agora é preciso reanimá-lo.”

Hollande e Valls insistem em que não há alternativa. Na realidade, existem em três frentes. Em casa, a UMP e os empresários propõem que o recorte trianual seja ao menos de 100 bilhões de euros, que se elimine o máximo de 35 horas semanas e que se reduza o número de funcionários. A Frente Nacional prefere diretamente abandonar o euro. No exterior, a Comissão Europeia acha que as reformas são insuficientes. Aí está centrada a grande batalha para os próximos meses.

Os dados estão colocados na frente de todos. O crescimento está estancado. Exatamente zero nos dois primeiros trimestres deste ano, que acabará em um raquítico 0,4%, apenas 0,1% mais do que em 2013 e menos da metade do previsto. O desemprego afeta 3,6 milhões de pessoas. É de 10,3%, menos da metade que na Espanha, mas para a França é uma porcentagem inédita em sua história recente. E continua crescendo.

As exportações, vitais para o país e seus gigantes industriais (Total, Areva, Sanofi, EDF, Bouygues, Renault, Citroën, Dassault, L'Oréal…), também estão caindo (0,1% no segundo trimestre), afetadas pela fortaleza até agora do euro e o escasso consumo na UE, mas também pela perda de competitividade, em queda já faz 15 anos.

A França controla 3,2% do comércio mundial, mas perdeu três pontos desde 2000. Os empresários sustentam que é preciso diminuir os impostos e as contribuições das empresas, que o mercado de trabalho é muito rígido e que é necessário suprimir a lei que trata do limite de 35 horas de trabalho. Confrontadas com um baixíssimo consumo (-0,5% no primeiro trimestre), os investimentos das empresas pararam no começo do ano (-0,9%); especialmente na construção (-1,8%), segundo a OCDE.

Déficit e dívida merecem um capítulo à parte. No caminho escolhido para sair da crise sem terremotos sociais, a França optou por não cumprir no prazo previsto seus compromissos para deixar o déficit abaixo dos 3%. A dívida é uma bomba-relógio. Continua disparada. O Instituto Nacional de Estatística (Insee) informa que já superou a simbólica cifra de dois trilhões de euros (95,1% do PIB, quase 20 pontos mais que a Alemanha). Só no primeiro semestre aumentou 28,7 bilhões de euros. É o que faz o primeiro-ministro Valls insistir: “Já faz 40 anos que estamos vivendo acima de nossas possibilidades.”

O Estado paga ao redor de 45 bilhões de juros anuais por essa dívida. “Mas a França se beneficia da confiança dos investidores, o que lhe permite pedir empréstimos a taxas muito baixas”, reage o Ministério das Finanças. Realmente, a França se financia quase exclusivamente nos mercados de capitais desde os anos 80, mas um futuro aumento de juros ameaçaria tirar dos trilhos a economia francesa em seu conjunto.

Na balança de problemas teríamos que acrescentar outros três elementos. Em primeiro lugar, o pessimismo reinante. A confiança no futuro está muito baixa, segundo as pesquisas. Em segundo lugar, a mínima confiança também nos dirigentes. Somente 13 de cada 100 franceses têm hoje fé na política do presidente François Hollande, a porcentagem mais baixa para um chefe de Estado desde que em 1958 foi instaurada a V República. E, em terceiro lugar, as tensões entre perdedores e ganhadores da crise ou entre vítimas e beneficiários da globalização.

Christophe Guilly, geógrafo e ensaísta de moda, autor de La France Périphéric, afirma que os moradores das grandes metrópoles, inclusive os imigrantes, conseguiram escapar da crise com poucos arranhões em um país cuja atividade econômica é majoritariamente da área de serviços (ao redor de 70%). Mas os habitantes de cidades médias ou núcleos rurais pagam e continuarão pagando a conta com fechamento de empresas e desemprego. Esta França esquecida, demonstra Guilly, é o foco de outra bomba-relógio social e do crescente celeiro de votos para a ultra-direitista Frente Nacional.

Há posições menos pessimistas e até otimistas. Eles têm seus argumentos para negar que a França seja “o doente da Europa”. Hollande e Valls estão à frente. O presidente insiste em que o fraco crescimento pela queda que sofreu toda a UE, pela fortaleza do euro até agora e pela baixíssima inflação (0,9% em 2013).

Valls afirma que a França “é uma grande potência”, que o PIB por habitante continua acima dos 30.000 euros anuais, que continua atraindo investimentos e mais turistas (o primeiro destino do mundo) e que tem recursos para superar os problemas... Se as reformas forem feitas.

Em 2009, o pior ano da crise, o PIB da França caiu 3,1%, menos que a Alemanha (-5,1%), Reino Unido (-5,2%) ou Itália (-5,5%). A dívida privada é uma das mais baixas da Europa (83,3%). Os salários nas empresas continuaram crescendo estes anos a uma média de 2% anual. A porcentagem de empregos de meio período também é um dos mais baixos (17,6%). E o número de multinacionais francesas entre as 500 mais poderosas do mundo mudou pouco (39 em 2005, 36 em 2013, segundo a Forbes).

O gasto público é um capítulo utilizado tanto pelos pessimistas quanto pelos otimistas. Fica com 56,6% da riqueza nacional. Supera em 12 pontos a Alemanha e em sete a média da zona do euro, segundo o centro de análise France Stratégie, ligado a Matignon e presidido por Jean Pisani-Ferry. Proteção social, saúde e ensino médio são os três capítulos que mais separam a França de seus sócios.

Em pensões, a França gasta 13,8% de seu PIB, cinco pontos mais que o Reino Unido e 4,5 mais que a Alemanha, porque a idade de aposentadoria é uma das mais baixas da OCDE (entre 59 e 60 anos). Em Saúde, a diferença é marcada pelo consumo maior de remédios. E no ensino médio – cujo orçamento continuará aumentando em 2015 –, Paris gasta 2,4% do PIB, o dobro do que a Suécia.

A resposta a essas cifras é a particular e especial via francesa para superar a crise. Hollande e Valls precisam confiar nos resultados. A segunda potência da zona do euro está em jogo. Alemanha, a primeira, é a mais interessada em que os franceses não fracassem.

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