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Contra o risco de outra Espanha quebrada

A amarga partida de despedida contra a Austrália (13h00), em um clima de encanto quebrado, pode ser o fim de um ideal de seleção e dos jogadores que a levaram até o topo

Del Bosque observa seus jogadores em Curitiba.Foto: atlas | Vídeo: Alejandro Ruesga
José Sámano

Na história da seleção espanhola é difícil achar uma partida tão amarga quanto a que terá de jogar com a Austrália na segunda-feira às 13h00. Uma obrigação ingrata para todos, uma cruz para os que jogam e os que não jogam, os que se retiram e os que ficam. Ninguém está a salvo de engolir o sapo, nem sequer aqueles que levaram a Espanha a um pedestal, que tampouco terá um adeus em paz. Para sua desgraça e do futebol espanhol, até o legado corre sério risco. Quebrado o encanto com os adversários, segundo a territorialidade ou a camisa de cada um, de repente abundam as suspeitas. Como o a memória do futebol é curta, os críticos se armam até os dentes sabedores de que o sucesso não é eterno e quando acreditam que já podem cantar vitória insultam e remexem o lodo.

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Seis anos no topo talvez não tenham servido para combater as arcaicas teias de aranha espanholas. Os oportunistas resistiam entocados e como simples espectadores de resultados se armam de razões para abrir velhas feridas, as que durante tanto tempo impediram a decolagem da seleção, submetida ao microscópio de madridistas, azulgrana, rojiblancos e dos que desfraldam as bandeiras. Então, nas cavernas, a seleção era apenas isto, uma seleção de jogadores que despertava suspeitas por toda parte, não um conjunto de babélica procedência mas unida por uma ideia esportiva e um objetivo comum, do qual se despedirá em Curitiba.

La Roja se converteu durante um tempo em um verdadeiro símbolo de coesão interna

Em um país que sempre foi monocultor de clubes, La Roja se converteu durante um tempo em um símbolo de coesão interna, uma equipe em si mesma na qual cabiam a Terrassa de Xavi, a Tolosa de Alonso, a Madrid de Casillas e a Astúrias de Villa. A seleção se fez civil e vestia um manto social sem caspa ou problemas patrióticos. Por fim, a Espanha se assemelhava a imensa maioria das seleções, onde não há problemas entre o City e o United, ou entre a Inter e o Milan. A Espanha não estava sujeita ao duelo permanente entre o Barcelona e o Real Madrid, aos olhares tortos entre os torcedores de um e de outro sobre quem é o culpado, quem é convocado ou o gene nativo de cada um. As pessoas estavam felizes com sua seleção, brindavam por suas conquistas e os jogadores, de qualquer lugar ou equipe, colocaram todo seu empenho a favor de uma causa geral: o prestígio do futebol espanhol e o orgulho de todos os seus seguidores, sem distinção. Todos igualmente mostraram a mesma fidelidade para a seleção que a demonstrada para seus clubes. Não pode ser de outra maneira quando já são muitos os que de pontos distintos dos mapas chegam a 100 partidas internacionais.

Casillas controla a bola durante o treino.
Casillas controla a bola durante o treino.ALEJANDRO RUESGA

Agora, após a derrapagem final no Brasil, começam a surgir ranços brotando do passado, os que, por exemplo, miram a jugular do treinador porque não foi tão madridista quanto se suponha, porque foi complacente demais com os barcelonistas, porque relegou não sei quem ou foi mais bonachão do que era conveniente. Aparece de novo o pior de uma Espanha não tão remota, como se Del Bosque tivesse de ser um treinador sectário com um chicote nas mãos. Com seus bons modos, o técnico se limitou a seguir com bom senso a proposta mais convincente que existia no futebol espanhol, a de um Barcelona que vencia. Mas era apenas um princípio de jogo. Ir além leva à demagogia, da que nunca participaram nem os internacionais do Madrid, cujas glórias nestes tempos têm sido indiscutíveis como a de seus colegas de Barcelona e tantos outros. Mas não faltaram os que viram com maus olhos quem também exaltou os méritos dos que não são de suas equipes domésticas. Como se fossem traídos pela união em torna de La Roja.

Volta a ideia de que Del Bosque deveria ter sido um tirano com o chicote nas mãos

A Del Bosque, homem educado, reto, afeito ao diálogo e responsável, se deve em grande parte a coesão do grupo e, longe de seus muitos acertos e alguns erros, que o comportamento no geral foi exemplar, por mais que nestes dias se atice a fogueira com algumas palavras de Alonso ou um descontentamento de Cesc Fàbregas. Em toda família há confusão, mas algumas são grosseiras. Que o diga entre as celebridades do futebol. “Eu penso em todos os jogadores, eles apenas em si”, disse ontem Del Bosque ao comentar o incidente com Fàbregas, bravo por não ter jogado o que desejava e displicente no treinamento do sábado passado. As palavras do técnico revelam que foi cozinheiro antes de ser padre e que se chegou ao ponto de ter de dar um puxão de orelhas em quem foi seu falso centroavante preferido, o faz. Sem panos quentes, sem melindres.

Sobre o técnico, sem dúvida, é possível discutir e discutir a parte do futebol, mas não seu papel essencial na convivência e bom relacionamento de uma equipe que entra para a história por seus títulos e pela saudável diversidade de seus principais protagonistas. Na retina ficará para sempre aquele abraço efusivo e interminável entre Casillas e Puyol, símbolos vitalícios em seus clubes, após a semifinal com a Alemanha na África do Sul. Onde alguns querem impor sua intransigência, Del Bosque só deixou suas convicções tolerantes. Se deixar o cargo será porque o exigem as penitências estabelecidas no futebol, não por oportunismos ou antipatias. Na vitória e na derrota, nada melhor que a Espanha Futebol Clube de todas as cores, plural, aberta e mosqueteira.

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