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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Da fatwa ao WhatsApp

Salman Rushdie foi condenado à morte por Khomeini há um quarto de século, o mesmo ano em que caía o muro de Berlim, havia uma matança na praça Tiananmen e surgia a web. O que mudou até hoje?

Timothy Garton Ash
ENRIQUE FLORES

Há 25 anos ocorreram quatro grandes acontecimentos cujos ecos ainda estão presentes em nosso mundo. Caiu o Muro de Berlim e com ele o império que Vladimir Putin adoraria restaurar. A matança da praça Tiananmen situou a China em uma trajetória diferente até chegar ao país que é hoje. Um pesquisador britânico pouco conhecido, chamado Tim Berners-Lee, inventou o que se transformaria na World Wide Web. E o aiatolá Khomeini ditou sua fatwa contra Salman Rushdie.

No domingo passado estive falando com Rushdie em Nova York, no Festival de Vozes do Mundo, organizado pelo PEN Club norte-americano, sobre as consequências que aqueles fatos tiveram para a liberdade de expressão em todo o mundo. Eu lhe perguntei como havia vivenciado as revoluções de veludo de 1989 e onde estava quando o Muro caiu. Não se lembrava com exatidão –certamente, em algum esconderijo– e confessou que havia sentido certa inveja ao ver outros, incluindo Nelson Mandela, alguns anos depois empreendendo o caminho da liberdade enquanto ele permanecia cativo.

Hoje não restam vestígios daquilo. Depois dos atos dos quais participamos, saímos a passear pelas ruas de Nova York com vários outros escritores, e Salman parou um táxi em uma esquina. Quem sabe de onde era o taxista, talvez iraniano? Essa vida tão normal para um escritor, e que durante tanto tempo lhe pareceu inalcançável, é uma vitória. No entanto, é preciso que nos perguntemos se a luta pela liberdade de expressão, contra fanáticos e opressores de todo o tipo, está avançando de verdade ou se encontra em retrocesso.

No Reino Unido, e na Europa em geral, a maioria dos muçulmanos aceitou de uma ou outra forma as normas básicas de convivência pacífica em uma sociedade liberal e pluralista. Já não dizem –como fez um muçulmano britânico chamado Iqbal Sacranie em 1989, enquanto alguns de seus correligionários queimavam exemplares de Os Versos Satânicos— que a morte era um destino “fácil demais” para Rushdie. Um pequeno sintoma dessa melhoria nas relações foi a discreta reação de quase todos os muçulmanos britânicos em 2007, quando o polêmico romancista foi nomeado cavaleiro. (Rushdie se lembra de que, depois de lhe dar os golpes do cerimonial no ombro com a espada, a rainha lhe perguntou: “Você continua escrevendo livros?”). Claro que sua majestade –na realidade, Tony Blair por intermédio dela– havia nomeado cavaleiro dois anos antes o próprio Sacranie. Uma solução muito britânica: dar aos dois um título.

Voltando ao que importa: na Grã-Bretanha, como em muitos outros países europeus, a evolução geral da grande maioria dos muçulmanos lhes levou a aceitar e até mesmo apoiar a liberdade de expressão, que por força inclui o direito (embora não o dever) de ofender.

Não obstante, Rushdie afirma –e uma pesquisa minuciosa o endossa– que uma pequena minoria nessas comunidades muçulmanas da Europa ainda está perigosamente radicalizada. E o medo e a autocensura continuam corroendo as bordas da vida cultural do Ocidente, tanto nas universidades como no mundo editorial e no teatro. Os públicos de Londres e Nova York desfrutam o musical satírico O Livro do Mórmon. Não parece que alguém tenha pensado em fazer um espetáculo chamado O Livro de Maomé.

Em muitos Estados de maioria mulçumana, a limitações à liberdade de expressão continuam sendo espantosas. Este ano, a Arábia Saudita ditou novas leis que tratam os ateus como se fossem terroristas. No dia de nossa apresentação em Nova York, o The New York Times informava sobre um homem chamado Alexander Aan que esteve mais de 19 meses preso na Indonésia, acusado de incitar o ódio religioso. Que crime havia cometido? Declarou-se ateu na Internet. E outro dado preocupante: o fato de que Estados que tendiam a ser laicos, como Turquia, estarem agora dando uma volta para a direção errada.

Este tipo de intimidação não é monopólio dos mulçumanos, em absoluto. Falei também com Rushdie sobre seu país natal, a Índia. Ali são os extremistas hindus quem lideram hoje a classificação do segundo esporte nacional: sentirem-se ofendidos. Por exemplo, a Penguin Índia retirou faz pouco tempo das livrarias uma história alternativa dos hindus escrita pela respeitada especialista norte-americana Wendy Doniger, diante das pressões exercidas por um grupo hindu dirigido por um antigo professor escolar. M. F. Husaín, com certeza o principal pintor moderno do país, morreu em exílio depois de sofrer ataques ferozes por suas representações irreverentes e modernas das divindades hindus. E dá a impressão de que as coisas vão piorar se Nahendra Modi ganhar as eleições. Ao mesmo tempo, do outro lado da fronteira, na Birmânia, turbas compostas por pessoas que se autodenominam budistas dedicam-se a linchar os rohingya, mulçumanos.

Na China, o sistema que tem se desenvolvido desde 1989 gerou ao mesmo tempo uma economia que logo será a maior do planeta e um esquema de censura que já é o maior do mundo. Ao mesmo tempo em que em outros países alguns poderes religiosos específicos perseguem os ateus e crentes de outras religiões, na China o Partido-Estado comunista assedia qualquer um que tente organizar um grupo religioso sem sua autorização, sejam eles cristãos ou Falun Gong. (Já praticar a espiritualidade privadamente não constitui problema nenhum, e muitos membros do esquema do fazem).

Uma das razões pelas quais a China movimenta numa maquinaria de censura tão imensa é que hoje se fala muito mais e é necessário vigiar muito mais a expressão do que há 25 anos, graças à Internet e à World Wide Web. WeChat, o equivalente chinês ao WhatsApp, conta com mais de 300 milhões de usuários. Dick Costolo, vencedor do prêmio de liberdade digital concedido este ano pelo PEN Club dos Estados Unidos, que é o presidente e diretor executivo do Twitter, nos lembrou em Nova York que diariamente circulam mais de 500 milhões de tuítes. É uma tremenda vitória quantitativa a liberdade de expressão que, no entanto, está emaranhada nos próprios perigos. Os regimes autoritários não são os únicos que aproveitam a Internet como ferramenta para vigiar a população. Uma pesquisa feita pelo PEN Club entre os escritores norte-americanos revelou que eles estão preocupados não apenas com o programa de vigilância da NSA, vazado por Edward Snowden, mas também que alguns deles, agora, sentem a necessidade de autocensurar-se. Quer dizer, a descoberta teve consequências terríveis.

“Sobre a batalha a propósito dos Versos Satânicos”, escreveu Rushdie em seu livro de memórias Joseph Anton, publicado em 2012, “ainda era difícil saber se ia acabar em vitória ou derrota”. O mesmo se pode dizer sobre as repercussões daqueles quatro grandes acontecimentos de 1989. Mas isso é o que acontece com a luta pela liberdade de expressão: nunca se perde completamente, nunca se ganha de forma contundente.

Timothy Garton Ash está escrevendo um livro sobre a liberdade de expressão e dirige o site freespeechdebate.com, em 13 idiomas.

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